Medo de Perder um Braço

Faz muito tempo, eu tinha dezesseis pra dezessete anos quando peguei num contrabaixo pela primeira vez. Ia até uma loja de instrumentos e sempre pegava num mesmo baixolão azul cuja marca não me lembro, e tocava qualquer coisa sem saber ao certo o que estava fazendo. Até que um dia montamos uma banda da nossa turma de terceiro ano de ensino médio onde tinha todos os instrumentistas, menos o baixista. Então, o dito cujo caiu no meu colo.

Peguei o baixo da igreja emprestado, levei pra casa. Ensaiei e toquei num dia frio. Frio este que atrapalhava qualquer tentativa de qualquer coisa além das tônicas que acompanhavam a guitarra e o bumbo da bateria.

A pequena experiência se encerrou ali até que, sabe-se lá por qual motivo, a escola fez uma vaquinha e me deu meu primeiro baixo de presente. Um Strinberg de quatro cordas vermelho. Lindo. Toquei algumas vezes numa banda gospel que fiz parte por pouco tempo até ser encostado. Depois, comprei um baixo de um amigo para ajudá-lo. Yamaha, também de quatro cordas, azul, igualmente lindo. Toquei poucas vezes até encostá-lo da mesma forma.

Anos se passaram até entrar numa banda da faculdade. Rock político. Onde frases simples era verdadeiros desafios. Praticamente impossíveis. Durou alguns anos até novamente encostá-lo e me mudar de cidade para estudar. Seis anos após as primeiras experiências com o baixo da igreja, entrei numa banda de reggae – coisa que conhecia pouco, mas que me ajudou a entender um pouco mais sobre escalas maiores e menores, grooves, equalizações, tonalidades, timbres e tríades. O B-A-BA que até então eu desconhecia. Dois anos depois, retornava o instrumento pro seu “canto sagrado”.

Lá ele permaneceu por mais dois anos. Eu, já com meus vinte e sete (idade pela qual os artistas costumam bater as botas cedo), o amava e o fitava de longe. Saindo de uma sessão de cinema, pensei cá com meus botões: “Que vontade de ter uma banda cover do Queen”. Aqui damos uma pausa nesta medíocre e desinteressante epopeia para um rápido apêndice:

Até os meus seis ou sete anos de idade eu não gostava de música. As escutava no rádio e achava chato, pois tinha a sensação de que sempre falavam das mesmas coisas (amor) e de que nunca tinham fim. Hoje, lamento que tenham. Mas a chave virou quando coloquei pela primeira vez um disco (na verdade CD) do Queen no aparelho de som, e um novo amor apareceu. Daquele dia em diante, virei um viciado em música, mas com um grave defeito que cultivo até hoje: escutava sempre as mesmas músicas incansáveis vezes. O que prejudicou meu repertório que, até hoje julgo extremamente limitado.

Deixando as interrupções repentinas machadianas e retornando a história em questão, meses depois recebi um telefonema de um amigo me convidando para montar uma banda cover do Queen. Era o retorno e o renascimento ao mesmo tempo. Era “agora ou nunca”: ou aceitava o desafio (mesmo sendo uma besta) ou fugia. Pois aceitei. E uma árdua e cansativa jornada se iniciara ali. Precisei aprender a ler tablaturas na marra. Treinar o ouvido e exercitar técnicas até então desconhecidas. Improvisar sem saber ao certo o que estava fazendo. Quando dei por mim, estava cercado de músicos que dormiam junto com o instrumento desde berço, enquanto eu, palerma, me degladiava com aquelas quadro cordas e um braço que parecia ter quilômetros de comprimento.

Me vi um amante medíocre, porém, amava. Ali descobri uma série de inseguranças, incertezas, desafios, cansaços... e vício. Somadas a frustração de não estar na performance que desejava e o arrependimento de anos de procrastinação. Por que não estudou o instrumento desde os dezessete anos, animal? Por que tirou-o do colo e só teve coragem dez anos depois? Maldito!

Em 2020, quarentemado dentro de casa e longe dos palcos, inventei de comprar um baixo de cinco cordas. Um Ibanez BTB, parecido com a linha que um dos baixistas que acompanho utiliza.

Agora peço licença para outra interrupção: Uma bela noite, num belo louvor, estava o jovem e magrelo Luan, com seus dezenove anos e seu baixo vermelho tocando, quando de repente BUM. O infeliz simplesmente emudeceu. O guitarrista prontamente pegou o contrabaixo do irmão (baixista profissional) e o entregou ao magrelo que se espantou com o tamanho, peso e som do bicho. Como se já não bastasse, o fatídico guitarrista brincou: “Sabe quanto esse baixo custa? Sete mil” (que na época valia dinheiro). O desespero bateu e me recusei a continuar tocando. Guardei e peguei um outro da igreja que tinha o braço trincado.

E o que essa história tem a ver com o baixo novo? Era o próprio! Com equalizações, captação e um controle de médios dificílimo de entender como funciona – hoje acho que entendo um pouco. Então, uma nova saga começou. Iniciei algumas aulas. Aprendi escalas, campos harmônicos, modos gregos – e já esqueci tudo. Mas a tocada mudou. Agora me engraçando a tocar com mais força, mais médios, mais técnicas e até mais dedos – até dormindo.

Três horrendos anos depois, sinto que uma nova fase está chegando. Perdendo a insegurança no palco – sim demorou. Mesmo errando, eu erro com certeza. O dedo coça. A vontade de aprender aumenta. A frustração, idem, pelos dez anos jogados no lixo. De uma hora para outra me tornei um baixista conhecido e até elogiado e requisitado. O que me faz me sentir uma fraude, pois o pouco que estudei já esqueci. Ainda me sinto aquele músico “onde pegar, pegou”. Sem conhecimento e treino suficiente para ter certeza do que está fazendo ao ponto de improvisar e quem sabe até compor.

Se você leu até aqui pode estar se perguntando o que toda essa história tem a ver com o título do texto. Pausa para uma nova interrupção machadiana – prometo que é a última:

Voltando ao Luan de seis e sete anos, este pequeno cidadão de orelhas grandes morria de medo de várias coisas – ladrão, morrer, morcego... coisas que cultivo até hoje. Uma vez na escola me pediram para desenhar o que eu mais tinha medo e, sabe-se lá por que, desenhei um leão. O fato é que eu não sabia exatamente do que eu realmente tinha medo, a final, tinha medo de tudo. Hoje, beirando os trinta, sei: tenho medo de perder um braço. O porquê? Bom, expliquei nos parágrafos anteriores.

Perder um braço (esquerdo ou direito) significaria perder o contrabaixo. Digo perder um braço por completo. Já vi vídeos de pessoas sem as mãos e sem o antebraço tocando na maior força de vontade que acredito que eu também teria caso acontecesse comigo. No entanto, perder um braço inteiro – até a altura dos ombros – seria fatalmente impossível tocar. Mesmo que fizesse um tapping com uma das mãos, não seria a mesma coisa. Mesmo que com uma vara eu batesse nas cordas utilizando os dentes, também não seria a mesma coisa. Não sentiria os tendões doendo por fazer frases que não consigo. Não sentiria as cordas grossas deslizando pelos dedos. Não faria os inúmeros slides que faço por não saber qual nota tocar exatamente. Tocar com os pés, nem pensar. Enfim, não seria a mesma coisa. E tanto faz ser o braço direito ou esquerdo pois sei que, na ausência de um membro, destro ou canhoto, o cérebro se vira e se reprograma pra dar conta da falta do mesmo.

Agora a pouco me imaginei nesse dilema: e se eu perdesse um braço? Perderia o amor que reencontrei há alguns anos e que descobri sem querer há outros tantos. Não sou músico. Não vivo de música. Mas vivo para a música. Posso dar aula de História ou Teatro sem um braço. Posso atuar como ator sem um braço. Posso estudar e escrever com apenas um braço. Mas tocar, de fato, seria impossível. Converso com meu psicólogo que a História, o Teatro e a Música são como filhos, que compõem o meu verdadeiro eu. No entanto, no contexto deste texto, outra analogia seria mais interessante ou faria mais sentido: sou casado com a História e o Teatro, e tenho a Música como amante. Que me espera quando volto do trabalho cansado e preciso fugir de casa, para desbravar minhas angústias, safadezas e criações mais íntimas.

Por isso estou aqui. De madrugada. Retornando ao papel depois de quatro anos, revivendo o trecho da música que diz “um vinho barato, um cigarro no cinzeiro”, para dizer que acabo de descobrir o meu maior medo: o de perder um braço.

Luan Tófano
Enviado por Luan Tófano em 26/07/2022
Reeditado em 05/08/2022
Código do texto: T7567915
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