Fantasmas

Trecho extraído da obra "Os Manuscritos de Wankan - Livro I: Leydam" disponível para aquisição pelo link

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A programação de Leydam era dormir na cidade fantasma de Humberstone – seu nome original era ‘La Palma’, rebatizada depois em homenagem ao engenheiro James Humerstone.

La Palma foi construída para hospedar os trabalhadores da usina inglesa de salitre, um sal utilizado na agricultura como fertilizante e na indústria bélica na produção de dinamite – inclusive o controle do salitre foi a razão da ‘Guerra do Pacífico’.

A Primeira Guerra Mundial com os seus desdobramentos causaram a falência das indústrias de salitre, e Humberstone foi abandonada. A cidade ficou mundialmente famosa pela ‘Matanza de la Escuela Santa Maria’ quando 2.000 pessoas foram mortas por estarem de greve, por conta das péssimas condições de trabalho na indústria.

Sim, as pessoas foram assassinadas por estarem de greve, apenas isso. Se lembra que Leydam iniciou o dia pedindo perdão pelas atrocidades humanas? Não foi em vão. Ele está indo para uma cidade fantasma que possui derramado em seu solo o sangue de 2.000 almas, entre homens, mulheres, adultos e crianças.

Chegando em Iquique, muito congestionamento. A cidade se destaca por seus monumentos nacionais, edifícios históricos, suas praias e pelos cassinos. Mas a questão aqui não foi tanto a quantidade de turistas chegando, e sim obras na rodovia. Leydam perde cerca de 1h e meia de viagem, e sai do engarrafamento com o Sol se pondo no horizonte. Faltam 38 km.

A noite cai na estrada e Leydam redobra os cuidados. Há grande movimento no sentido contrário nesse horário. Turistas voltando dos passeios na região, inclusive de conhecer Humberstone, muito frequentada durante o dia.

Humberstone tem uma magia sinistra no ar, como poderia se esperar de qualquer cidade fantasma. Não se trata apenas de um local de onde todos foram embora, se trata da guerra, se trata da violência, se trata de trabalhadores oprimidos e mortos por reivindicarem seus direitos, se trata de quantas pessoas morreram pelas dinamites produzidas com o salitre de lá.

Leydam procurou uma casa aconchegante e estendeu seu saco de dormir na sala. A mochila servia de travesseiro. Havia aproveitado a parada em Iquique para comprar um pedaço de carne temperada. Fez uma fogueira na varanda e fez seu churrasco rústico ali, sozinho.

Leydam imaginou que haveria mais alguém interessado em poder contar no futuro que dormiu uma noite na cidade fantasma de La Palma, mas não, estava completamente só. Cravou 2 forquilhas no chão, uma de cada lado da fogueira, para espetar a carne. À margem da fogueira a caneca de alumínio serviu para esquentar a água do chá.

Finalmente noite de lua. Após jantar dedilhou seu velho violão, cantarolando uma música nova que estava compondo. Ele veio com ela na cabeça desde o banho congelante no Pacífico. Canção melodiosa, falando de amor, amor pela natureza, amor pela aventura, amor por tudo.

Não tinha como não recordar do pai que havia planejado tantas noites em sua cozinha aquela viagem com o filho. Os olhos se enchem de água e o filho chora como criança a falta do pai. Agora ele deixa o sentimento fluir sem vergonha. O julgamento de estranhos não lhe põe medo.

Já era tarde quando Leydam finalmente se rendeu ao sono. Não tinha pressa em acordar no outro dia, pois queria conhecer La Palma. Deixou a porta de entrada aberta para correr um vento, puxou a fogueira para mais perto da entrada, tentando evitar a aparição de algum animal e adormeceu.

Já era alta madrugada quando o som da porta batendo despertou Leydam. De susto deu um pulo e se colocou imediatamente de pé, com o coração acelerado. Suas mãos suavam. Imaginou que tivesse sido o vento. Abriu a porta novamente e checou a fogueira. Apagara com o vento.

A noite estava clara, mas não completamente iluminada. Ele acendeu novamente a fogueira. Não ventava. Voltou a se deitar. Quando estava quase pegando no sono a porta bateu novamente. Sentiu um calafrio na espinha. Os cabelos ficaram arrepiados na nuca.

Outra opção não via, senão que fosse algum animal. O cheiro da carne poderia ter atraído algum predador. Raposas não botavam medo em Leydam, mas a região também era o habitat do Puma. Não lhe pareceu boa a ideia de estar em uma casa com uma onça-parda à sua espreita.

Rapidamente pegou a lanterna e iluminou a sala. Nada. Percorreu toda a casa, iluminando os cômodos e a lateral externa da casa através das janelas. Ponderou que ela poderia estar rondando a construção, procurando um meio de entrar.

De repente sentiu a presença de algo atrás de si. Se virou rapidamente e viu um vulto passando para o outro cômodo. Suas pernas tremeram. Vagarosamente caminhou com a lanterna em uma mão e o canivete na outra. Nada no cômodo.

Escutou um barulho no pavimento superior da casa – era um sobradinho. Subiu com cuidado pela primeira vez aqueles velhos degraus de madeira. Se ele soubesse que precisaria subi-los os teria testado mais cedo. Ainda estavam firmes. Testou todos os cômodos superiores e nada.

A tensão começou a aumentar à medida que ele ia de cômodo em cômodo sem nada encontrar, mas sempre ouvindo ruídos por trás de si. A sensação de uma presença não lhe escapava e ao se virar sempre via de relance o vulto. Se lembrou do acampamento na noite anterior, a mesma sensação, os mesmos ruídos, o mesmo calafrio.

Rapidamente passou a mão em suas coisas que estavam encostadas na parede da sala e saiu porta afora, rapidamente. Já no meio da rua olhou para trás e viu uma silhueta o mirando de dentro da casa, pela janela da sala. O vulto sumia quando era focado pela lanterna, reaparecendo quando recebia apenas a luz indireta da Lua.

Completamente assustado, começou a ouvir ruídos e passos por toda parte. A sensação da presença de algo ou alguém próximo a ele só foi aumentando. Finalmente não conseguiu aguentar a pressão.

Desistiu de esperar o raiar de um novo dia para conhecer La Palma, amarrou rapidamente e de qualquer jeito as tralhas sobre o lombo de Rafaella e “picou a mula” dali o mais rápido que conseguiu.

Sob o olhar preocupado da Lua seguiu viagem forçando para manter os olhos abertos. Em velocidade reduzida abriu a viseira do capacete para que o vento frio da noite o ajudasse a se manter acordado.

Ventava forte. Os jatos de ar incidiam lateralmente sobre a moto, empurrando-a para o meio da pista. Era difícil manter a direção. A adrenalina estava alta, os músculos tensos. Ainda atônico com o contato que teve com 1 ou mais seres desencarnados, o forte sono, os ventos laterais e o receio de ter deixado algo importante para trás na correria da fuga.

O Sol parecia ter tirado férias. Ele não aguentava mais pilotar. Continuar viagem nessas condições era extremamente arriscado para sua vida. Vencido pelo cansaço parou a moto à margem da rodovia e se deitou encolhido ao seu lado, tomando uma pedra por travesseiro. Desmaiou.