Flor, Abismo e o Passado

O passado soa como uma espécie de clichê; parece existir uma tendência desses sentimentos, desse querer voltar a um tempo que foi destruído, ou apagado, como você achar melhor denomina-lo. Cada um caminha de um jeito torto – será que as pessoas privilegiadas também? Não sei, pode ser (achismo) que algo também as acompanhe como uma grande penumbra – mas, as deixemos de lado.

Alguns dias, durante um café e um cigarro, observo os olhos da minha mãe e fico matutando sobre seu passado, sobre as situações e intensidades que a levaram a se torna a mulher que acabou por ser, hoje. Minha Vó também, com um semblante que parece ter se perdido em um tempo, em um banco da escola, quando ela dividia o lanche com um garoto que ela gostava.

As pessoas e seus passados. Passados demarcando e atravessando toda uma vida. Meus amigos demasiadamente marcados por desvairos anteriores, tentando anular os espelhos e deixar suas casas no opaco, no que não transmite ou expressa algum tipo de projeção devassada sobre o que eles são.

Viver dentro de nostalgias soa como irrealidade, porém, existe uma impossibilidade de ir, através dos anos, lidando com o que vamos nos tornando. Você sente o silêncio, você sente um descontentamento, às vezes porque em dias de domingo, pela noite, tudo não signifique a promessa do renascimento para uma nova semana; ao contrário, domingos são dias de rememorar e se perder, espiando, amiúde, a impossibilidade de anular a ideia de uma segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado e outro domingo resumido a pequenas memórias mortas.

Então, para não realizar algum ato drástico ou também para iniciar o ritual das pequenas mutilações do de dentro de si, você apenas acende seu cigarro, sente sua boca seca e procura voltar a um tempo em que existir tinha aquela intensidade de um soltar de pipas, jogo de peteca ou até mesmo o horrível e fatídico jogo de futebol, tão presente em um tempo no qual você não poderia pensar que sim, que sentiria saudade.

O passado, então, vem como um tipo de suporte, porque você já sentiu algo um tanto ameno dentro de si. O passado adentra seus poros, feito o torpor de drogas, ainda que você não as use mais. O passado cospe na tua cara amassada o que você poderia ter sido.

Só que os equívocos, trazidos pelas águas, essas que descem por a face de qualquer um, neste momento, levam a uma pequena compreensão sobre as distâncias e as ausências e as pessoas que não voltaram e os amigos que se perderam e a afinidade que se esvaiu tão docemente quanto veio, um dia, quando sentando em uma praça qualquer fumávamos mil cigarros e bebíamos Coca-Cola.

Então, as pequenas mortes enraizadas em cada ausência tornam qualquer claridade meia luz nostálgica de boate, em fim de noite, aquele último copo, aquela última conversa, o cheiro e o som da embriaguez, até mesmo o ir embora das garotas performáticas.

Meu passado é ambíguo, ou a forma pela qual adentro nas memórias, existe umas puídas, como velhos tecidos gastos, existe outras tão resistentes, e, em certos domingos, pela noite, perto do fim da noite, naquele instante exato em que a noite deixa de ser madrugada e a madrugada passa a ser outra, não sei a palavra. Relembro do poder das Rochas, que duram para sempre, quietas, mas cheia de forma em suas rotinas de pedras. Lembro de conversas sobre algo de simplório e bonito que diziam ver em mim, ou a primeira pessoa a falar sobre o negro dos meus olhos.

Enfim, lembranças presas e encasteladas, perdidas por uns dias, encontradas em outros. Quanto a mim, uma bolha opaca flutuando numa névoa de silêncio composta pela ausência de comunicação daqueles ao meu redor. E essa bolha também poderia ser espetada e nesse ato de furar a bolha, talvez uma liberdade, talvez uma queda de própria altura.

Procuro imaginar que de qualquer forma o “estourar a bolha” tenderia a impulsionar um tipo de engrenagem, por sua vez, decepando o tempo de dentro, de fora, de todos os ângulos, também os espaços para assim nascer uma flor, marcada pelo orvalho dos dias frios, desse lado de cá.

Essa flor cresceria, cresceria com uma impetuosidade e pela primeira vez não seria eu a abdicar dos muros e derrubar janelas para deixar a porta aberta a partidas de outrem...

A flor se tornaria esse algo, esse ser em que fui me transmutando, e como todas as flores que nascem em buracos de asfalto, essa também morreria, levaria embora esses dias decorrentes de ausência, levaria embora esse silêncio e a incomunicabilidade que se faz dentro desse espaço no qual me encontro.

Afinal, alguém não disse que o tempo destrói tudo? Por que não destruir o passado que já não nos serve ou as memórias, afetos, relações que deveriam ir junto com os esses pequenos cacos, que somos nós, as pessoas banais.