Contos e Crônicas Cotidianas [1] Piano

Ela chega em casa após duas horas de engarrafamento, tempo suficiente para entre uma raiva e outra, pensar no que fazer para solucionar o grande problema de cauda que está instalado em sua sala. Ela olha para o piano, prende a respiração e solta devagar, pega o telefone com o peso de quem já faz aquilo há muito tempo.

-Oi, não vem buscar não? - ela altera um pouco a voz, mas sem falar alto a ponto de ser um escândalo.

-Rose, já pedi pra você parar de me ligar!

O homem do outro lado é Alberto, seu ex-marido.

-É simples parar de te ligar, Alberto. Venha buscar a porra do seu piano! - nesse momento o tom de voz já pode ser considerado um escândalo.

-Rose, eu já disse que ainda não arrumei um lugar pra ele, assim que arrumar eu mando buscar.

-Foda-se! Quero que você tire esse troço daqui até amanhã ou então eu meto num site de desapego. - Sim, nesse momento não há dúvidas de que já era um escândalo com um tom de voz que certamente foi ouvido por todos os apartamentos do prédio.

Os vizinhos de Rose talvez já estivessem acostumados com as inúmeras discussões dela ao telefone e sempre pelo mesmo motivo, o piano de cauda.

Quando conheceu Alberto, foi amor à primeira vista. Ele, maestro de orquestra, parecia, e era, um grande partido. Ela o conheceu num concerto no teatro municipal e quando foi parabenizá-lo os olhos se cruzaram e o resto nem precisa dizer. Quer dizer, precisa! Eles já estavam morando juntos em menos de duas semanas. E junto com a relação, o piano de cauda que passou de geração pra geração na família de Alberto e que estava na casa do seu falecido pai. No testamento o piano ficou pra Alberto e a casa, pra ser dividida entre os irmãos. Explicações dadas sobre Alberto e o piano de cauda, foi isso. Depois de doze anos eles se separaram, não Aberto e o piano e sim, ele e Rose. Alberto saiu u de casa dizendo que pegaria o piano "semana que vem" e lá se vão dois anos.

Alberto recomeçou a vida com outra pessoa, já está até namorando enquanto Rose sequer conseguiu levar algum pretendente em casa, pois estar com o piano “plantado” na sala, era como estar com Alberto sentado na poltrona e fumando um cigarro.

Rose é psicóloga, passa a maior parte do seu dia ouvindo problemas dos outros, mas incapaz de solucionar os seus, vive com uma certeza de ser totalmente incompetente quando se trata da própria vida. Sempre que se sentia só, abria o piano, tocava duas ou três notas, se lamentava, chorava, dormia, acordava e olhava pro piano ali quase lhe dizendo “dormiu bem, querida?”

E foi ao acordar mais um dia e olhar o piano, que ela resolveu ligar novamente para Alberto.

- Alberto, vem pegar a droga desse piano agora! – não, ela não subiu o tom de voz, foi doce até.

- Eu já disse que não tenho onde colocar ele, Rose. Faz apenas dois meses que sai daí, arrumar um canto pra um piano desse tamanho não é fácil. – ele também foi doce.

-Então vamos fazer o seguinte, saio eu!

-Como? - respondeu Alberto, incrédulo.

- Saio eu, Alberto. Eu não consigo mais conviver com o fantasma que é você incorporado nesse piano. Eu preciso recomeçar e com um pedaço seu aqui, não dá.

- Não precisa ser tão radical! Vamos pensar em outra coisa.

- Você vai tirar o piano daqui?

-Não!

-Eu posso vender, queimar, reciclar?

-Claro que não, tá louca?

- Então qual a solução?

Os dois ficaram em silêncio por dois minutos. Quando o silêncio fala, não há muito o que se fazer.

Rose e Alberto voltaram há um mês. Mais fácil reatar do que se desfazer de um piano de cauda.

Elmo Férrer
Enviado por Elmo Férrer em 29/08/2022
Reeditado em 30/08/2022
Código do texto: T7593907
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.