Livro chiclete

Tem música que é assim, por mais que se queira livrar dela, não tem jeito, ela gruda igual chiclete. E aí não importa se o gênero musical é o que você curte, ela fica o dia inteiro em sua cabeça. Quem não lembra de “delícia, assim você me mata, ah! se eu te pego”? Com o livro também é assim, leitura acabada, pensa que ficou acomodado na prateleira da estante e, de repente, “sem mais nem porquê”, ele está de volta à sua mente.

Um que me pegou desse jeito foi Os anos, de Annie Ernaux, e não só pelas 87 músicas citadas na história. Uma resenhista o classificou (e gosto da rotulação dela) de biografia fotográfica, pelo recurso utilizado pela autora tendo como fio condutor da sua narração, fotos reunidas da infância à velhice, desfiando o passar dos seus anos pelas lembranças ali retratadas.

As mudanças de hábitos e costumes ocorridas a partir dos anos 40, quando ela nasceu, até os anos 2000, estão em sua narrativa. Para alguns, por não terem vivido o período, a história talvez não fizesse muito sentido, por não “casar” de imediato o que ela diz ao que se tem em mente. Ausubel explicou bem esse fenômeno, lá em meados dos anos mil e novecentos. Mas nada que uma consulta ao google ou aos bons tratados sociológicos não supra essa “deficiência” dos que não tiveram tempo de tomar o remédio recomendado por Nelson Rodrigues aos jovens, o envelhecer.

E por que esse se tornou pra mim um livro chiclete? Depois de sua lida, a minha “leitura do mundo” foi contagiada por ele. Os meus anos acabaram ganhando cores, a partir dos anos dela, ajudando a escrever o livro que todos temos em mente. E como apenas dez anos nos separam há uma interpenetração entre eles e me percebo misturando as nossas histórias.

As mudanças do tempo, da sociedade, os grandes acontecimentos, tudo isso impacta na vida das pessoas e hoje, mais do que em qualquer outra época, a repercussão é imediata com os favores da tecnologia. Pode parecer irreal aos mais jovens, mas houve uma época em que as programações de TV não eram transmitidas de imediato, em cadeia nacional. Isso fazia com que uma pessoa que morasse no Rio ou em São Paulo, soubesse mais cedo, por exemplo, o final de uma novela, passando a ter essa informação privilegiada em relação a outras partes do país. Bom? Ruim? “Só sei que era assim”.

Ela observa também em Os anos a mudança no linguajar, e eu lembro bem, quando os vocabulários masculino e feminino eram diferentes. O termo sacanagem, hoje largamente utilizado tanto por meninos como meninas, já foi relacionado aos “catecismos” de Carlos Zéfiro e só fazia parte, ainda que proibido, da fala dos mancebos. Hoje, até a Bossa Nova é foda, não só no linguajar de Caetano, como no de Ludmila em sua canção Insônia.

Lembra que nos anos 70 ou 80 o futebol era tido como “coisa de homem”? O que se vê hoje nas mesas redondas que discutem os resultados da rodada? No mínimo meio a meio entre apresentadores e apresentadoras.

A leitura de Os anos me levou em busca de outras obras dela. Li e gostei muito de O acontecimento (há o filme na HBO) e O lugar. Um dia eu comento sobre eles. Por enquanto é bom pensar o quanto os anos de Annie me fizeram embarcar, de carona, na passagem dos meus anos. E que serão também os seus, é só ler o livro pra comprovar.

Fleal
Enviado por Fleal em 06/09/2022
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