Ontem, bem no fim da tarde, vinha caminhando, cabisbaixa, rumo ao aconchego do meu lar.

 

Lembrei-me de que precisaria de um dinheiro para comprar pães que me serviriam de banquete à noite. Logo, era preciso ir ao banco, algo que evito ao máximo.

 

Subi as escadas do BB e vi no canto, um amontoado de cobertores do tipo São Vicente, acizentados com listras azuis, formando uma espécie de bololô. Ao lado da protuberância havia um cãozinho branco, muito agitado.

 

Olhei de novo e o amontoado de cobertores se mexia. Pensei fossem mais cães, como aquele, ou algum bicho que o animal aguardava, fervorosamente, pra lhe servir de alimento.

 

Fui até o caixa eletrônico e saquei o dinheiro. Olhei de novo e lá estava um homem. Parecia um moribundo. Talvez fosse. De pele escura, dentes faltosos,  cabelos embolados... Ao seu lado, o cachorro. Ambos se entreolhavam como cúmplices, trocavam abraços e brincavam, feito duas crianças. Não perceberam minha presença. Ou quem sabe estavam tão acostumados a serem invisíveis que um olhar sensível não lhes era bem vindo?

 

Fitei naquela cena enquanto ferviam na minha cabeça os milhões de pepinos da carga pesada do dia: carro teve um problema; uber cancelou a viagem; resultado do último concurso não tinha Mônica em letras garrafais, entre os classificados; empresa vai pagar só 60% do salário; plano de saúde tornar-se-á participativo ou aumentará 38%.

 

Mas o cachorro e aquele homem vestido de pobreza anularam a minha mente insana, e por um instante, apenas um instante, vi homem-bicho, bicho-homem e nossa vulnerabilidade.

 

Dei dois passos, e fui surpreendida pela ternura daquele homem que, dividia com o cachorro, um prato de sopa que foi distribuída, às dezoito horas, pelo grupo Só Amor.

 

Ambos usavam o mesmo talher. Numa hora o homem comia, noutra o cãozinho. Pensei em oferecer dinheiro. Era a única coisa que tinha e me vinha à cabeça (as disparidades sociais são sufocantes). Como quem quisesse tirá-los daquela cena que me parecia um poço de indignidade. Indigna nação! Mas ao mesmo tempo, pousava sobre mim a racionalidade de olhá-los, afinal, quem se sentia mal era eu. Eles, ao contrário, exalavam felicidade. O dinheiro não compra tudo e a felicidade é algo só sentida nos gestos serenos.

 

Desci as escadas na ponta dos pés, passo a passo, em silêncio profundo. Coração parecia escola de samba. Tive receio de que a minha insensatez pudesse quebrar aquela cumplicidade dos amigos.

 

Fui pra casa com a sensação de que fui injusta, talvez pudesse acolhê-los, ofertar alimento, ouví-los... Quem sabe levá-los para um lugar seguro? Mas fiquei atônita, ainda mais pela vergonha de vê-lo um bicho entre os cobertores de homens. Não vi um homem, vi um animal acobertado pelas mazelas de um mundo, em que a minoria, tem seus direitos preservados.

 

Entrei no prédio e fiquei pensando em quantos seres, tais como aquele, vivem à míngua, à mercê de uma sociedade seletiva e discriminatória. Pessoas que não foram escolhidas para ocupar os melhores lugares e acabam apagadas e, até odiadas, por fazerem da rua, suas casas. Não ajudei o homem que pra mim era um bicho.

 

Hoje cedo, ao abrir as redes sociais, dei de cara com uma triste notícia: Homem que dormia em frente ao BB Central, morre por disparo de arma de fogo. O cãozinho que era seu fiel companheiro, permanece deitado próximo do seu corpo, desde a ocorrência.

 

Quis gritar. Culpar o mundo. Chamar a Constituição. Dar voz de prisão. Queria identificá-lo. Dar-lhe, no fim, uma casa digna: cemitérios não são fritos de aço.

 

Mas ontem... Passei por aquele banco e vi um bicho homem. Tinha felicidade até nos poros. Um homem marginalizado, sem abrigo, mas com um amigo. Um homem deitado em frente ao Banco: tanta pobreza e com tanto dinheiro por perto. Tamanha incoerência social. Vi um homem...

 

... E nada fiz.

 

 

 

 

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 15/09/2022
Reeditado em 15/09/2022
Código do texto: T7606022
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