A parte que ninguém me contou

Ninguém me contou que havia um caminho.

Notei isso na estrada, indo para o trabalho, numa quinta de manhã meio chuvosa, com nuances de trânsito e o sono à espreita: se eu fechasse os olhos por dois segundos ou um pouco mais, me entregaria ao mundo dos sonhos - mas queria muito ler, então iniciou-se o ciclo eterno dos olhos abertos.

Há poucos anos, na escola, quando me decidi pelo curso de Direito e enfiei (quase que literalmente) na minha cabeça que um dia seria Delegada de Polícia, Professora Universitária ou representaria o Brasil na ONU, ninguém me explicou o preço dessas coisas – e nem me disse que exercer qualquer profissão exigiria um dia a dia com demandas intrinsecamente chatas e um estilo de vida, em certo modo, parecido com o grau necessário de monotonia que eu já enfrentava no Colégio.

“A vida não é um filme de Hollywood”, onde quando os mocinhos alcançam o objetivo, a tela fecha e as letras aparecem rolando. A vida continua. Sempre continua. Continua até depois da morte. Depois de chegar ao trabalho, vou pegar a estrada de novo. Além do mais, me ensinaram também a achar um objetivo depois do outro e gastar meus oitenta anos (no máximo) buscando atingi-los, fazendo disso tudo uma corrida meio louca em busca do máximo de troféus possíveis com a promessa de que no próximo, sempre no próximo, eu vou ser feliz.

"Eu vou ser feliz quando for aprovada na Universidade", pensei eu. Fui feliz durante o mês. Depois, passei a acreditar – no fundo, mas sem dizer em voz alta – que seria feliz quando me graduasse. E aí depois seria feliz quando fosse aprovada. E aí quando me casasse. E aí quando fosse mãe. E aí quando fosse promovida. E aí quando o meu filho se formasse. “Não, não, uma hora a gente chega lá! Uma hora essa luta vai passar, a vitória vai vir e eu vou viver o restante dos meus anos colhendo os louros da vitória!” – Além desse tipo de coisa não existir na vida real, eu me esqueci do meu vício em ter objetivos e da minha insatisfação insaciável que é bastante natural.

Desanimei no meio da faculdade, mas permaneci nela – até me lembrar o porquê estava ali. Até que descobri que o propósito era o caminho e não o destino, que eu não seria nada a menos que me tornasse alguma coisa – e se tornar alguma coisa dói, dói muito, dói em níveis extremos e exige sacrifício. A maternidade está ai para provar isso: qualquer mãe com a qual você converse, por mais apaixonada que seja pelo seu filho ou por sua família, vai ser incapaz de esconder as mazelas que o “tornar-se mãe do Igor” ou “tornar-se mãe da Maria Cristina” ou “ser a mãe do Manoel” lhe trouxe.

No fim das contas, só vale a pena porque elas aprenderam a amar o que estava sendo gerado – não como um objetivo doentio, mas como algo (nesse caso, pessoas, inevitavelmente independentes) que traria vida, alegria e perspectiva a elas e ao mundo ao redor. Nem todos nós geraremos filhos e a maternidade é só o exemplo mais profundo da lógica comum de uma vida leve: amar o que está sendo gerado com uma gentileza capaz de superar os erros e persistir no caminho. Amar a mulher competente e capaz de auxiliar os que dela necessitam, de fazer o máximo possível de justiça, que está sendo gerada dentro da jovem que acha a aula de Direito do Trabalho um saco, que entrou na rotina da Universidade e que acha um desafio sair dela. Amar a perspectiva de viver uma fase adulta honesta, com o máximo de verdade possível. Amar o dia a dia que um dia foi um sonho – se eu contasse para a menina da escola que não fazia ideia do que era um caminho o que vivemos hoje, ela choraria de alegria.

O amor diminui potencialmente o peso dos fardos e nos torna melhores em sacrifício. O amor pode ser perigoso ao passo em que nos faz chamar de “deuses” reflexões das nossas próprias ausências: se todo excesso esconde uma falta, talvez meus anseios homéricos me apontem para uma escravidão de mim mesmo. É um risco assumir uma busca cega em busca de algo que parece ser luz mas na verdade, é um reflexo fraco de um espelho que reflete a luz que emana de outro lugar – como os gatos pulando atrás das bolinhas de luz criadas pelos espelhos da crianças.

Antes de amar, é necessário calcular o preço e a veracidade do objeto: é o Sol ou o pequeno reflexo que fascina os olhos de um animal? Com perdão da metáfora péssima apesar de poética, encerro dizendo que só existe segurança em uma das opções: só quem sabe de tudo é Deus e ninguém é melhor em construir caminhos que Ele. N I N G U É M. A prova disso é que a sua lógica – e a minha também – traçam planos perfeitos que fracassam de maneira surpreendente todo santo dia, desde o ônibus que não passa ao mestrado que não é aprovado. Aí nós precisamos do alfabeto inteiro em vias alternativas quando, na verdade, os dEle é que permanecem. A nossa sorte – pautada em misericórdia – é que Ele nos ama e faz o melhor, o que nos garante estar sempre vivendo sobre o melhor cenário possível (mesmo que doloroso, caótico e por vezes, frustrante em nossa perspectiva). Leia o texto sobre confusão, eu recomendo. Foi bom aprender aquilo.

A vida para de ser uma incessante corrida atrás do vento quando temos onde focar os olhos: naquilo que é Eterno, nunca morre, permanece.