A praia

- Morango, Chocolate, Doce de Leite, Flocos e Milho Verde.

- Tem Morango moço?

- Opa, morango? Sim sim claro que tem. Vai querer pequena?

-Eu quero morango.

- Quantos minha filha?

- Eu quero vários.

Um sorriso largo, um pouco enrugado pelo tempo, amável e singelo se abre projetando para fora dentes brancos perfeitamente simétricos que brilham ao serem atingidos pelos raios fortes do sol praieiro em uma quarta feira qualquer, em uma praia qualquer, de uma cidade pequena e sem importância para o mundo.

É uma praia deveras estranha, com areias brancas demais e água incrivelmente azul e brilhante.

Um picolé passa direto pelas mãos de uma menina pequena, com seus 5 ou 6 anos, trajando uma pequena roupinha de mergulho roxa. Ela está feliz e esperta e tão agitada que nem repara o picolé caindo de suas mãos e atingindo solo.

A dona do sorriso largo, mãe da menina, levanta ambos os polegares entrelaçados com uma careta doce e um sorriso bobo. E fazendo expressão de espanto pergunta á filha de maneira alegre:

- E agora gatinha?

- Mamãe, eu quero out...

A pequena criança mau tem tempo de terminar a frase e logo sai correndo em direção á areia amarela da praia. Ela olha a água, olha para os pássaros que cobrem os céus azuis, olha e olha para a mãe que está totalmente extasiada com o que vê.

A pequena, munida com a força da infância e falta de medo que só o total desconhecido podem prover em abundância, pula em direção ao mar sem se importar com nada. Ela mergulha ao fundo e sobe várias vezes, não parece se cansar com nada. Parece ter sua força aumentada a cada mergulho ao fundo.

A mãe, de longe, observa sem parecer sentir medo. Mas por dentro seu coração acelera e pode-se ver a pele de seu pulso de contorcendo delicadamente assim com o fluxo pulsante do sangue que aumenta a pressão. Se algum observador externo pudesse vê-la momento notaria seus pés batendo ritmicamente sob a areia quente da praia. Seus olhos não se movem de um único ponto ao horizonte. Um ponto roxo claro de roupa de mergulho, que se joga com toda a coragem do mundo sobre as ondas do mar. As ondas quebram e suas pernas finas quase como um boneco é a única coisa que sua mãe vê ao longe...

Súbito: Vai descer...

A mãe se assusta sem entender ao escutar o som tal qual um sussurro. Não vê ninguém em volta e conclui que foi o vento lhe pregando peças e volta sua atenção a seu pequeno pontinho roxo no mar.

Ela vê a filha rir de um canto a outro e pular chamando-a: Venha mamãe, venha ver os peixes comigo mamãe. Venha ver os peixes mamãe.

Então a mãe olha para o horizonte e sente seus braços e pernas ficarem mais leves. Seus cabelos parecem flutuar ao seu redor e seu corpo perde todo o peso e então ela começa a boiar. Ela olha para baixo e não vê mais a areia quente que cobria seus pés. Ela está levitando em uma água cristalina....

Passam um e dois e três e se repente vários peixes coloridos ao seu redor. Roçam suas bochechas e seus braços e ela sente uma pequenina mão que a puxa para dentro de um redemoinho de peixes coloridos das mais diversas cores... E elas dançam entre eles. Batem os pés, nadam e se jogam para trás. Por um momento não parece haver limites até que seus pulmões cobram o preço e ela sente necessidade de subir e respirar. Puxa a pequenininha pelas mãos e é recompensada com um sorriso que beira a imensidão do universo (Seja qual tamanho isto for). Lindo e puro. Puro...

Antes de tirar a cabeça da água, a mãe nota um homem andando debaixo da água. Nada de anormal para uma praia. Porém o que a assusta é o fato do homem estar de sapato, camisa branca social e calças além de uma mochila. Ele olha pra ela e dá um sorriso de canto de boca sem dizer nada. Apenas passa.

Ao olhar novamente... Ela não enxerga nada além de bancos de areia e peixes coloridos.

Mas de maneira suave ela deixa sua cabeça se virar com o puxar doce da filha.

Elas se olham e passam alguns momentos se olhando e rindo juntas rodando e batendo os pés na água.

Alguns momentos depois as duas avistam um barco á vela de pequeno porte ao longe... Um barco cor de vinho, com velas grandes e brancas, mais ou menos do tamanho de um ônibus.

Elas nadam de volta para a praia e acham novamente o vendedor de picolés. Compram vários...

A mãe, já cansada com um leve desconforto nas pernas, se senta na areia branca da praia.

A filha, cansada, deita no colo da mãe com o picolé e enrolada em uma toalha.

Ali, as duas se abraçam e sentem que estão no lugar mais maravilhoso de mundo. A filha olha para a mãe e a mãe olha para a filha. A mãe nota que o dia está escurecendo, pois a uma sombra de folha de coqueiro no rosto da pequena criança. Ela começa a sentir que a filha está pesada demais e que por algum motivo começa a pender para o lado, mais e mais até que...

...Subitamente a mãe abre os olhos.Luz forte, calor intenso, cheiro forte, sensação de desespero.

Seu coração acelerado emudeceu o barulho das ondas, o som das várias pessoas ao redor, o cheiro de mofo e desodorante barato, o barulho ensurdecedor dos carros e buzinas e a aquele barulho de cigarra que é acompanhado de: Vai descer motorista...

Ela não tem mais duvidas... Tudo não passou de um sonho bom. Ela está dentro de um coletivo... Lotado, ás 07:15 da manhã de uma quinta feira, totalmente suada, ela passa a língua seca em seus dentes e percebe que como de costume, faltam 3 ou 4; Nem conseguir respirar direito é possível. Bom seria se fosse tudo verdade. Se ela estivesse na praia, se ela estivesse em um lugar onde fosse tranqüilo e bom.

E o mais importante ainda, um lugar onde sua filha com poliomielite poderia ser feliz como qualquer outra criança...

É quarta feira, 14 de setembro... Meus sonhos não resistem ao duro peso da realidade...

Rafael Noles Delacroix
Enviado por Rafael Noles Delacroix em 29/09/2022
Reeditado em 12/04/2023
Código do texto: T7616968
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