Se rainha fosse, baixaria um decreto proibindo que as casas de avós fossem fechadas. A lembrança é uma espécie de espetáculo ilusionista que suscita em nós o desejo de ressuscitar momentos outrora vividos e cuja emoção é semelhante a de ganhar um beijo inesperado.

 

O sofá de madeira com poltronas em veludo cotelê vermelho escuro foi o meu maior baú de afetos. De lá, se via a imagem do casamento de meus avós, pregado à parede: um quadro grande torneado com pintura áurea.

 

Meu avô, que faleceu antes mesmo de eu nascer, foi retirado daquele quadro por diversas vezes, e passou pelas histórias de minha amada avó, como personagem principal, de uma família numerosa, em que o amor era servido em utensílios especiais.

 

Não fossem as travessuras que lhe eram peculiares, mesmo na idade adulta, talvez pudéssemos tê-lo conhecido num abraço, tal qual, o que a vovó descrevia: eram garras de urso, salvaguardando seus ursinhos.

 

Foi lá também, naquele sofá desmontável, que vimos nascer dezenas de camas para dar conta dos 22 primos que chegavam para as férias. Era um barco à deriva e, vez ou outra, se ancorava no mar da alegria que só cabia na cozinha de vó, no deleite dos bolinhos de chuva com canela: afeto é sinônimo de doçura.

 

Mas foram os natais, nossas maiores escolas. De uma família numerosa era possível tirar conclusões inevitáveis: as diferenças sociais não pulam gerações e nem são controladas pelas emoções e sentimentos. Nas trocas de presentes, no dia da ceia, de um lado se encontravam os que, por acesso e sorte, tinham bonecas e carrinhos da estrela. Do outro, os que aproveitariam a oportunidade para comprar o básico e então se vestirem.

 

Mas havia algo grandioso que fazia daquela família um poço de felicidades, a cena triste era substituída pela troca de brinquedos que os primos e primas faziam entre si, e no final, todos tinham a mesma condição de criança feliz. Na nos pertencia...

 

E na correria em busca do doces, esbarrávamos em minha avó, sentada no sofá vermelho que, abraçando um a um, rezava uma ave-maria e fazia o sinal da cruz.

 

Os gestos que acompanhavam o carinho da matriarca da família apagavam toda ou qualquer situação ruim que alguém pudesse experimentar, mas o melhor ainda estaria por vir...

 

E do alto de seus 1 metro 50 cm decretava a senhora do destino que nenhum de nós ficaria solitário porque a casa de avó sempre estaria aberta.

 

Se não fosse o tempo, a roubar-lhe, num susto e nos fazer marejar os olhos na ausência dos abraços natalinos e do sofá marsala de poltronas removíveis...

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 29/09/2022
Reeditado em 29/09/2022
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