À SERVIÇO DA PÁTRIA - 2

CASO MISTERIOSO

Certa feita, após um curso de formação de cabos que fizera na 4ª CIA. DE INTENDÊNCIA, em Santos Dumont, já cabo-recruta, trocara de serviço com um colega que morando fora da cidade, pediu-me para substituí-lo no serviço de cabo-de-dia, na CIA (já estava novamente no Quartel General da 4ª Região Militar, em Juiz de Fora, onde fora designado inicialmente).

Éramos seis (parece até título de novela, não?) Cinco soldados estavam sob minha autoridade. Dois no plantão de banheiros e três no plantão do alojamento naquela noite.

O serviço transcorrera normalmente, até‚ então. Quando, pela manhã, veio, até a mim um soldado que acabara de acordar, afobado, dizer-me que ocorrera, durante a noite, um grande problema. Algumas carteiras, tipo escolar, que estavam dentro do alojamento, que o marceneiro terminara na véspera, deixando-as "no osso", isto é‚ somente na madeira lixada, sem verniz, nem pintura, estavam todas escritas com canetas esferográficas azuis. Toda a sua parte superior.

Foi um corre-corre. Reuni toda a guarda à meu comando, e, questionei quem fizera aquilo. Só poderia ter acontecido à noite, durante os turnos de serviço, já que até às 24:00 horas havia percorrido todo o alojamento e nada notei de alteração.

Os soldados dos plantões, "apertados", nada acrescentaram às investigações. Fiquei num beco sem saída. Como acusar não tendo testemunhas para o delito? Sargento-de-dia, Oficial-de-dia, também nada conseguiram apurar. Claro estava, que um dos três soldados do plantão noturno estava metido até o pescoço na "cagada". Mas, qual? Nenhum se acusava.

A INVESTIGAÇÃO - REMOENDO

Esperamos até‚ o meio dia. Já era sábado, o serviço fora na Sexta-feira. Normalmente a guarda era rendida às oito horas.

Capitão Pestana, era esse o nome do Comandante da Companhia, reuniu toda a Companhia no pátio do quartel e deu a seguinte sentença: - Como ninguém se acusa do delito, O CABO-DE-DIA FICARÁ DETIDO, ATÉ RESOLVER-SE O CASO. A RESPONSABILIDADE É DELE.

Veja só, como fiquei. Detestava tirar serviço na escala vermelha e fins de semana. Quando isso acontecia, ficava furibundo e ao mesmo tempo deprimido.

Dezoito anos, desabrochando para a vida, ali, preso ao quartel, com aquele ar fresco que vinha dos jardins do museu Mariano Procópio, onde as meninas passeavam saltitantes, lançando olhares convidativos aos "recos" presos ao serviço do quartel. Era um caos.

À tarde, ao cair da noite, quando tirava serviço no portão principal, era a pior parte. Via passar outros rapazes e moças, todos perfumadinhos e de banho tomado, que se dirigiam ao centro da cidade, ou a algum clube das proximidades para se divertirem.

Quando passava o bonde, nessas horas sempre lotados, a rapaziada ainda "mangava" da gente ali de serviço. Até‚ o motorneiro, meu conhecido, O João da Roça, filho da Dª Maria da Roça, irmão do Mané-pé-de-ferro, tirava sarro, puxando o cordão e batendo o sino do bonde.

Era sábado e na hora do almoço mal pude empurrar algum alimento pela goela abaixo. Havia um nó que não deixava a comida descer.

BUSCANDO PISTAS

Ficamos, eu e os soldados que moravam no quartel, debruçados sobre as carteiras, tentando decifrar a letra do "artista".

Fiquei matutando: "Fulano, o soldado que tirou o último turno, também como eu, na parte da tarde, trabalha em seção burocrática, e lá, escritura livro de expedição de correspondências. É só ir lá, pegar um livro e conferir os “erres e esses” do dito cujo. Mas como fazê-lo, já que, sendo sábado a seção encontra-se fechada? Somente segunda-feira ao meio dia o sargento abriria as portas.

Meu Deus, esperar até‚ segunda-feira para apurar a culpa do "amigo da onça"!

Era demais. Fiquei elétrico.

Até‚ que o Caxias, isto mesmo, o soldado engajado tinha esse nome, um boa praça, encontrou a solução.

Conhecia todo mundo no contingente e sabia onde morava o sargento responsável pela seção, inclusive seu telefone.

Foi só um telefonema e o bom sargento, que era meu conhecido, pois que eu trabalhava no Serviço de Embarque, seção ao lado da dele, arribou-se de sua casa e veio incontinente até ao quartel.

Após inteirar-se do caso, não se fez de rogado, abriu a porta da seção, encontrou o tal livro de remessa de correspondência que o soldado suspeito escriturava diuturnamente e sobraçando-o liderou o cordão de interessados, que já era uma dezena ou mais, até ao alojamento.

Eram mais de quinze, entre soldados, cabos e o sargento que debruçaram-se sobre as carteiras para comparar as "garatujas" do suspeito.

Quando bati os olhos nas páginas do livro, meu coração disparou, não tive a menor dúvida, os números eram idênticos aos das carteiras, e as letras, mais ainda; não havia como negar a autoria do delito.

Por unanimidade chegou-se a conclusão que o soldado Vieira, que estava de plantão no último turno, na madrugada fria, resolvera esquentar os dedos, escrevendo os números e nomes de todos os soldados do quartel nas carteiras recém-construidas.

Foi um alívio para mim.

Fui cumprimentado pelo Caxias, pelo sargento e por todos os companheiros presentes, pela brilhante ideia de comparar as letras.

MAS ...

Mas, isso não bastava. Havia a punição do Capitão Comandante da Companhia. Somente com ordem dele eu poderia ausentar-me do quartel. Já era por volta de 16 horas.

Novamente o Caxias. Pegou o telefone e tentou falar com o Cap. Pestana. Responderam que ele não estava em casa, fora ao clube jogar vôlei e somente apareceria em casa pela noitinha.

Com tal noticia, fiquei perplexo e abatido; passaria mais tempo detido e com o caso resolvido.

O Sargento, vendo meu estado de ânimo, resolveu interferir, por ver a injustiça que eu estava sendo vítima. Telefonou para o clube, pediu para chamar o Capitão, e conversou com ele demoradamente. Voltou com a seguinte decisão:

Estava eu liberado, desde que fosse até‚ a casa do soldado Vieira, trazendo-o comigo para cumprir a pena imposta a mim.

O CARA A CARA

Nasci de novo. Tomei um banho rapidamente, vesti minha farda e saí como um bólide pelo portão principal do quartel. Toda a guarda já sabia da minha história e nem me pediram a permissão para sair do quartel.

Como o soldado da fábula, que fora mandado "entregar uma mensagem ao Garcia", também eu não sabia o destinatário da carta, isto é, onde era a casa do "amigo Vieira".

Na saída do portão da Guarda, informaram-me que ele morava em Benfica, num canto, atravessando a linha do trem. Subi num ônibus que passava ocasionalmente por ali, e sentado durante a viagem, conversando com meus botões (e olha que eram muitos, pois que a farda era daquelas abotoadas do pescoço até abaixo do umbigo) matutava: "Como vou chegar lá? Chegando lá, como vou me apresentar? E, se o Vieira não estivesse em casa? Como proceder? E se ele se recusasse a acompanhar-me?”

Tudo isso vinha em torvelinho em minha cabeça, ao mesmo tempo. Nem senti a viagem, quando dei por mim, estava defronte a casa onde me informaram morar a família do Vieira. Bati na porta. Uma Senhora, com um avental amarrado à cintura, veio me atender:

- Boa tarde, por favor, é aqui que mora o Vieira? Perguntei.

- Sim, é meu filho. Qual o problema? Perguntou ela.

- Sabe, minha senhora, é que houve um problema no quartel e o Capitão Pestana, Comandante da Companhia mandou que eu viesse pessoalmente aqui para convocar o Vieira; falei, sem muita convicção.

- O meu filho está tomando banho, pois chegou do futebol ainda agora pouco. Estou passando sua farda. Pode esperar aí na sala, que vou avisar que você está aqui, e enquanto ele termina o banho, termino eu de passar sua roupa. Com licença, disse-me a senhora.

- Ufa! Até aqui, tudo bem, até‚ que fui convincente.

Vamos esperar a fera e ver no que dá. Miserável, pensava comigo mesmo, estava no futebol, todo frajola, enquanto eu purgava no inferno, detido no quartel.

Não demorou muito e o faceiro já apareceu fardado, com a cara mais lavada (não porque tomara banho) e perguntou:

- Uai, Clemente, o que aconteceu para você estar aqui, a essa hora? Aconteceu outra revolução?

Secamente, vendo a cara de cinismo do elemento, que convivera comigo na caserna por mais de sete meses já, repeti mais ou menos o que já dissera à sua mãe, que a tudo observava.

- Só mais um momentinho, que vou buscar minha sacola e já podemos ir.

Acompanhou-me sem muitas perguntas mais.

No ônibus, sentados lado a lado, quase não conversamos. Respondia por monossílabos, e rezando para chegar ao quartel bem rápido. Uma por que não estava mais aguentando tal situação constrangedora, e outra, porque já deviam ser mais ou menos 18:30 horas e uma vez entregue o "fardo" podia ser liberado ainda para a noite do sábado e o domingo inteirinho.

O DESLINDE FINAL

Chegamos ao quartel e logo o sargento o pegou pelo braço e o levou até ao alojamento, sem qualquer conversa. Na subida da escada ele já demonstrava medo e começava a chorar. Antes de ser levado até‚ às carteiras desabou num choro convulsivo e entre soluços confessou "o crime".

- Crime maior, você cometeu, deixando seu companheiro detido, pagando por algo indevido. Isso não é papel de um soldado. Vai ficar detido até‚ Segunda-feira, quando o comandante decidir seu caso; despejou o sargento.

Nem olhou para mim, baixou a cabeça e foi levado pela guarda.

Eu, por mim, tirei um peso das minhas costas. Livre, leve e solto, corri para minha casa, celeremente, com o coração aos pulos de alegria...

(Vicente de Paulo Clemente)