Um jeito manso de ser BITUCA

A emoção fazia o coração pulsar mais rápido, Milton Nascimento, ou Bituca estava prestes a entrar no palco. Eu fui embalada em minha juventude por suas ricas canções: Clube da Esquina, pelo pessoal de MG.

O palco vai se descortinando ao som de um apito de trem: piuiiiiiiii! piuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!

Ah, que emoção foi vê-lo sem sua costumeira boina, sem seus cachos, com roupas coloridas, como um rei africano.

A garganta fechou segurando um soluço. A voz embargou: Milton, um mestre se apresentando com toda humildade.

Voz modulada, como a declamar um poema, com todo respeito a um público seleto.

À nossa frente, na arquibancada, um grupo de amigos que acompanha o grande poeta há anos e tem idade parecida,fica extasiado ao ouvir aquela voz cálida, mais à frente, uma senhorinha esqueceu por instantes as dores nas articulações e baila com seu parceiro como se fossem dois jovens no festival de Woodstock. Ao vê-los com brilho nos olhos e o mais lindo sorriso de prazer, reconheço que estou no lugar certo.

E as músicas começam a sair daquele peito cheio de amor, a voz (que voz) falando de sentimentos puros, as letras musicais como só ele sabe compor nos fazem cantar junto.

A boina foi colocada em sua cabeça, os óculos escuros também. O poeta está sentado, a voz, soa suave, como um sussurro de trovão. Forte, sem perder jamais a ternura.

Com o Bituca, a vida é uma Travessia.

“Quando você foi embora

Fez-se noite em meu viver

Forte eu sou, mas não tem jeito , hoje eu tenho que chorar…”

Então o “nó” da garganta se intensificou: perdi a voz e os olhos marejaram.

Entre músicas poetizadas, sorvo a voz melodiosa do poeta falando sobre a vida… sem mágoas, em borbulhas de amor.

E leio cantando com os demais, a Carta musicada para Lennon e Mc Cartney:

“…Porque vocês não sabem do lixo ocidental.

Não precisam mais temer

Não precisam da timidez

Todo dia é dia de viver…”

Ah, Beatles, vcs não imaginavam a força da Música Popular Brasileira, dos nossos mineiros!

Meu respirar não tem mais compasso, mas não ligo, a adrenalina toma conta de mim.

Por um momento, esqueço onde estou, fui abduzida e levada à uma pequena cidade mineira. Vejo meninos de camisas de botão e bermudas com suspensórios, pés no chão, brincando. Sol batendo a pino e eles correm driblando o vento, outros, sentados na calçada jogam bola de gude, sorrio para eles que não ligam muito para o meu olhar curioso. Como estão felizes, e me sinto criança também. Essa criança que hoje é adulta está viva para sempre, passado e presente já não existem, existe sim, uma música contando a história de todos. “BOLA DE MEIA, BOLA DE GUDE.”

“Bola de meia,

Bola de gude

Um solitário não quer solidão.

Toda vez que a tristeza me alcança um menino me dá a mão.

Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração

Toda vez que o adulto fraqueja ele vem pra me dar a mão”.

Piuiiiiiii! O trem me tira daquele torpor e a criança que há em mim, volta a ser a adulta apaixonada pela vida.

E divago: o que é ser amigo? Como surge uma amizade? Como fazer com que perpetue? Milton trás consigo alguns que ganhou ao longo de sua vida, em especial a turma do Clube da Esquina, amigos queridos das Minas Gerais, além do seu grande parceiro Fernando Brant.

Retratou de forma fidedigna a importância da amizade em Canção da América.

“Amigo é coisa para se guardar embaixo de sete chaves, dentro do coração…” . Um verdadeiro hino à amizade. Fui embalada novamente pelo voz ímpar do grande cancioneiro.

E o espetáculo não parou…” Que notícias me dão dos amigos?
 Que notícias me dão de você?
 Alvoroço em meu coração
. Amanhã ou depois de amanhã
 , resistindo na boca da noite um gosto de sol…” sim, nada será como antes, de repente, não ser como antes pode ser bem melhor. Antes, estivemos em meio a uma pandemia acirrada. As notícias recebidas de amigos próximos, familiares nem sempre eram animadoras. Alguns partiram sem dizer até mais , foram pegos também de surpresa, mas eu continuo a crer no sol que surge após a “boca da noite”. E o nosso “visionário” seguiu profetizando e falando do amor…mesmo o solitário amor, tendo que partir, seguir pelo mar. “Para quem quer se soltar

Invento o cais

Invento mais que a solidão me dá

Invento lua nova a clarear

Invento o amor

E sei a dor

De encontrar

Eu queria ser feliz

Invento o mar

Invento em mim o sonhador

Para quem quer me seguir

Eu quero mais

Tenho o caminho do que sempre quis

E um saveiro pronto pra partir…”. Respiro fundo… essa mensagem é muito forte, até porque O “Saveiro”deslizou pelas águas e não parou mais.

E lá vem ele homenageando as “Marias” da vida. Mulheres negras, mães solo …que lutam para dar Dignidade a seus filhos, para fazê-los acreditar, apesar de…”Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
, é preciso ter gana sempre
.Quem traz no corpo a marca
 Maria, Maria mistura a dor e a alegria”. As Marias também somos nós, que lutamos com garra, que não desistimos fácil.

E foram tantas canções, tantas poesias compartilhadas…

E o show precisou chegar ao fim. Ou seria o começo? Ou o fim é o começo de tudo? São encontros, desencontros e despedidas…

“…A hora do encontro
 é também, despedida
. A plataforma dessa estação
 é a vida desse meu lugar
, é a vida desse meu lugar
… É a vida…”

E como um não querer, as cortinas desceram e subiram algumas vezes… vontade de ficar erguidas e o poeta permanecendo, mas chegou o momento de se fecharem, e ele, o astro, a voz forte e firme, seguir para outros palcos, outros prados , para dividir tanto amor…

“O mundo lá, sempre a rodar
 e em cima dele tudo vale
.

Quem sabe isso quer dizer amor
, estrada de fazer o sonho acontecer”

E o sonho aconteceu!!!’

E acontece!

Viva a liberdade!!!