ALGOZES TERNOS

Aqueles olhos sabiam de tudo, até o que não queria que soubessem. Tinham asas fogosas e sensores que captavam o que os meus suores conspiravam. Eram olhos desnudos, lépidos e sorrateiros. Verdadeiros baús de sete chaves. Pareciam ter asas e varandas indecorosas. Por vezes, se faziam passar pelos olhos de Deus, julgando cada ser, cada coisa e cada sombra com passos de feitor. Olhos nos quais não cabiam volúpias rasas, nem vinganças vencidas. Tinham porões, catacumbas e úteros encravados no seu chão. - O que será que teriam em segredo? - O que será que fazem quando deixam de enxergar?... Naqueles olhos tão abruptos e escrachados, decantei milhares de anos da minha vida. Fiz deles meus algozes ternos e eternos. Fiz neles cicatrizar cada derrapada que tentei revoar. Fiz neles um punhado de descampados desejos andarilhos, todos descascados da minha fé. Aqueles olhos me seguiam com suor de perdigueiro. Quando insistia em vestir o véu de farsante, eles estrebuchavam, faziam o diabo. Assim fui me dando conta do quanto representavam para mim. Do quanto me escondia nas fronhas do seu bafo, nas alegorias com gosto de Arlequim. Eram olhos de rei que nunca abdicará do seu rito, da sua glória, do seu quinhão. Olhos enervados, soturnos, de voz puída e pouco coada. Por vezes foram neles que acanhei as pétalas do medo, jurando perdão e, quem sabe, alguma alforria qualquer. Olhos de mãe dedicada e aflita. Neles untei os fantasmas da morte, cavalgando feito anjos bêbados e febris. Já desisti de pedir ao tempo que os desagarre, os chute longe. Tudo em vão. Esses olhos vão velar meus dias até virarem pó ou, quem sabe, uma remela ávida e fagueira que ninarei até dormir enfim.

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 16/10/2022
Reeditado em 16/10/2022
Código do texto: T7628612
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