Fakes e a Guerra dos Mundos

     Epiphânio me liga de Belo Horizonte, aflito, e pergunta:

     - Itaipu arrebentou? É verdade? Você está bem?

     Em seguida, o amigo e conterrâneo manda o vídeo que tinha recebido: uma represa, supostamente Itaipu, com um mundaréu de água passando por cima da barragem.       

      A ligação vinha num sábado ensolarado, dezembro de 2017. Tinha acabado de sair de uma livraria de shopping  em Foz do Iguaçu, onde folheei livros e tomei um cafezinho. Respondi que Itaipu não tinha desmoronado. Acalmei-o, era impossível, a cidade continuava sua vidinha normal, turistas por todo lado, trazendo o faz-me-rir aos cofres hoteleiros.

     Instintivamente, até olhei para os lados de Itaipu, embora não pudesse vê-la, mas não parecia que o Armageddon tivesse chegado.  Dias mais tarde, fiquei sabendo que o vídeo "apócrifo" era de uns cinco anos antes, gravado na hidrelétrica de Yacyretá, a uns 300 km, rio Paraná abaixo, na fronteira Paraguai/Argentina.

     Isso me fez lembrar o caos urbano causado na costa leste dos Estados pelo filme A Guerra dos Mundos, programa radiofônico da CBS,  cuja estreia se deu em 30 de outubro de 1938. Na estratégia de lançamento, uma notícia "fake", na voz de um ainda desconhecido Orson Welles, informava repetidamente que aTerra tinha sido invadida por marcianos. Foi a primeira notícia "fake" a atingir uma região tão grande ao mesmo tempo e causar pânico em toda a costa leste dos Estados Unidos.

     No caso de Itaipu, a notícia falsa de um desmoronamento da barragem tinha potencial suficiente para causar pavor coletivo. Seria uma bomba hídrica arrasando cidades de três países, desde Foz do Iguaçu e Ciudad del Este até Buenos Aires. 

      Agora corta, vamos pro interior de Minas, anos 80. Ferrinho não trabalhava, vivia de aluguel e tramoias políticas. Nas eleições, trabalhava sim, porém com a língua ferina, a favor de algum candidato, esparramando boatos antes e no dia do voto. No popular, era um refinado fofoqueiro. No diz-que-me-diz, amealhava uns cobres e ficava conhecido, um dia poderia ser vereador, talvez prefeito.

         - Sabe o que Fulano disse hoje lá na loja do Oscar? Que tá cansado de cumprimentar preto, tá gastando  uma nota com álcool pra desinfetar a mão. 

        No dia grande dia, percorria trechos entre os locais de votação, espalhava boatos e voltava ao QG de seu "chefe", um dos candidatos a prefeito, para renovar seu repertório. Saía logo com a novidade:

       - Sabe o sanduíche que Fulano tá distribuindo? Em vez de salame, tem uma nota de cem no pão...

     Gastava muita sola de sapato pra fazer o percurso. Subia e descia ladeiras, parava em qualquer rodinha de prosa,  mas valia a pena, tinha retorno triplo: espalhava o veneno, ganhava uma groja e ainda malhava sem precisar de academia.  Como se diz no futebol: fazia o hat-tric perfeito, três gols no mesmo jogo.

     Voltando a 2022, às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, estamos assistindo à moderna guerra pela Internet. Com um clique apenas,  destroem-se  reputações, amizades e famílias. O Ferrinho virtual atinge instantaneamente mais de 200 milhões de alvos, entre ingênuos e mal informados.

     Esse Ferrinho contemporâneo nem suja a sola do sapato, ataca a partir de um estúdio com ar condicionado. Na batalha eleitoral do momento, vale tudo, acabaram-se os cuidados e os melindres, é guerra. A maioria dos internautas mergulhados nessa bolha não raciocina, age por reflexo, não verifica a autenticidade do que recebe e não se preocupa com as consequências do que compartilha. Parece não terem filhos nem futuro.

       Depois de 84 anos, os marcianos estão de volta à Terra. 

       

 

     

 

William Santiago
Enviado por William Santiago em 18/10/2022
Reeditado em 21/04/2024
Código do texto: T7629998
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