Sêmen tipo exportacão

     Um serviço que envolvia muita grana, por isso mesmo, muita responsabilidade no nosso trabalho era a autenticação consular de assinaturas do Ministério da Saúde da Dinamarca para terem validade no Brasil. Naquele tempo, o país nórdico já era uma referência em produção de carne e material genético suíno, situação que permanece até os dias de hoje. Pois bem, os documentos a serem legalizados eram os certificados de origem de sêmen suíno e as assinaturas do tradutor juramentado dinamarquês/português. Eram carimbadas e assinaturas, assinaturas e carimbadas, em quantidade nunca vista no período que passei por lá. Um monte de papel obrigatório para que o sêmen pudesse entrar legalmente no Brasil. E era tudo pra ontem. Havia muitos dólares em jogo.

     

     Os maços para legalizar, amontoados na mesa, aguardavam as carimbadas e as assinaturas do comandante da operação, o Guru. Os outros dois, eram Gottlieb e eu. Éramos três mosqueteiros de gravata e colarinho,  coordenados pra executar o serviço. A coisa ia bem, linha de montagem à Ford, mas tudo cansa e precisa-se de um refrigério. Num dado momento, Guru  pede uma pausa para tomar um cafezinho. A embaixada recebia café brasileiro para divulgação e a divulgação começava por ali mesmo.Ninguém foi contra a pausa. Guru pegou a garrafa térmica, serviu o café com cuidado em pequenos copinhos de plástico e, com seu largo sorriso que aumentava os olhos, foi procurar o açúcar. Não o encontrava onde deveria estar, passou a procurar em lugares menos prováveis. Depois de uns minutos, achou-o na geladeira, conteúdo meio empedrado. O Guru tentou de tudo pra tirar o açúcar, mas a tampa de alumínio estava entupida. A umidade de Copenhague conspirava contra aqueles intrépidos burocratas.

     

     Guru sacode aqui, sacode ali, bate com a palma da mão no fundo do açucareiro, sacoleja, tudo em vão: as pedras são grandes demais para sair na abertura da tampa. Daí, abre o açucareiro, emborca-o e sacoleja de novo, primeiro tapando com a mão. Ainda havia resistência. Nisso, sente que as pedras de açúcar estão se separando, tira a mão e, socorro... algumas pedras escapam da prisão e atingem com violência os delicados copinhos de plástico. Strike indesejável! Imaginem a cena: o café nos copinhos espirra pra todo lado e emporcalha (sem trocadilho com os fornecedores do sêmen) grande parte dos documentos.

 

     O drama estava estabelecido: o serviço era pra ser entregue no final daquela tarde, seguiria pela Scandinavian pela manhã, não havia tempo para pedir novos documentos, nova tradução, tudo isso era inviável. Guru, por instantes, perdeu o largo sorriso e pareceu desconcertado. No entanto, rapidamente, deu tratos à bola e achou a solução: improvisou um varal de barbante e dependurou todos os certificados manchados de café para secar ao amparo de um ventilador. Em preto e branco, os papéis dependurados não tinham a poesia das roupas comuns do feriado nacional do Chão de Estrelas, de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa. Os documentos seguiram assim mesmo rumo ao Brasil e devem ter cumprido sua missão. Não há registro, até o momento, quarenta e oito anos depois, de que a operação comercial tenha abortado por causa da mistura de café brasileiro e sêmen suíno dinamarquês.

 

 

William Santiago
Enviado por William Santiago em 25/10/2022
Reeditado em 27/12/2023
Código do texto: T7635386
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