Glossaura, a erudita (I)

Vez ou outra deparamo-nos com alguém que derrama um não-saber, um composto de absurdos linguísticos. Assim é Glossaura Santos Silva, cuja erudição vem de si mesma, cinzelada no improviso, ao longo de anos sem formação nem tampouco, contestação.

Simpática e comunicativa, era capaz de dissertar sobre qualquer assunto atual ou histórico, com a força da certeza. Se há baixa autoestima, a de Glossaura Santos Silva era altíssima, olímpica! Se não havia lido sobre um determinado assunto, sabia-o nos pormenores, por meio de algum amigo, colega ou conhecido. Pouco esforço era necessário para constatar que os saberes de Glossaura eram da profundidade de um pires.

Por outro lado, não demonstrava surpresa diante de algum assunto esdrúxulo; antes, assumia ares serenos como quem iria revelar apenas mais um assunto rotineiro. Isso, por si só, bastava para torná-la uma pessoa entediante, mas sua capacidade costumeiramente se superava.

Ao se pôr a falar, empregava discurso pomposo, solene, empolado, envolto em gestual eloquente: empinar a cabeça, franzir a testa, olhar por debaixo dos óculos ou fitar o além. Falar não era para Glossaura Santos Silva: ela ia além: revelava verdades. E isso num linguajar solenemente repleto de bizarrices e de erros crassos.

Uma de suas réplicas favoritas era “pois é, isso é uma questã de ...”. “Questã” era sua forma feminina para questão. Outra de suas invenções era empregar a expressão “agro-doce”. Ela apreciava molhos “agrodoce”, assim, mesmo, sem pudor. Apreciava, também, “banana passas” e de “uva passas”. Tudo claramente pronunciado como quem está a dar a dica da forma correta.

Outro de seus talentos vernaculares era deslocar a sílaba tônica em algumas palavras: “ela foi récem operada”, com um bom acento na primeira sílaba, “ré”! Gostava de estar em boa “compania” e recomendava que jovens se candidatassem para trabalhar em “companias” que pagassem bem. Os vocábulos “absolver” e “absorver” existiam apenas na forma “absolver”. Então, “toalha que não absolve a água”, “papel para absolver a gordura”, “atenção para absolver todo o conhecimento”. E, claro, já havia comprado “absolvente feminino”.

Seu apreço pelos pleonasmos viciosos era de raiz: “entrar pra dentro”, “sair pra fora”, “subir pra cima”, “descer pra baixo”, “comer comida”. E as dificuldades com regência preposicional: “vem sentar na mesa”, “estou no computador”, “estou no telefone”, “sentar no piano”. Gostava da expressão “depois da tempestade, vem a bonanza” e não a bonança. Driblar era substituído por “diblar”: o zagueiro ficou “diblando” o atacante.

Acertar a sílaba tônica era outra de suas proezas: não fazia diferença entre “calúnia” e “calunia” e empregava apenas “calúnia” (ele me calúnia). Fazia o mesmo com “centrífuga” e “centrifuga” (essa máquina não “centrífuga” bem). No hospital, pessoas recebiam alimentação "parentoral” e, nas prisões havia muitos que tinham cometido crimes “odiondos”.

Glossaura não tinha dúvidas vernaculares. O que dizia e como falava estava para além de qualquer necessidade de apreciação. Glossaura era certa; não sofria de baixa autoestima.

René Henrique Götz Licht
Enviado por René Henrique Götz Licht em 27/10/2022
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