DIÁRIO DE UMA PANDEMIA (Dia 51; Dia 52; Dia 53)

Dia 51

16 de outubro de 2026

Nunca pensei que isso pudesse acontecer comigo: Estou com saudade da vizinha.

Minha, amiga.

Amiga e apenas isso.

Bem, talvez também possa dizer que é confidente.

Os linguarudos e invejosos podem falar de nós o que quiserem, mas nunca vamos admitir que tem algo além de amizade e confidencialidade.

Então, minha vizinha é minha amiga.

Mas isso não significa que eu não possa sentir saudade.

Foi passar uns dias na casa da filha, mas com as restrições para viagens, causada pela edição brasileira da pandemia, ela não está conseguindo voltar.

Já pensei em lhe fazer uma visita, mas também não conseguiria passar pelas barreiras sanitárias entre os municípios.

A vigilância está muito rígida. E eles não deixariam passar um cara que faz parte do grupo considerado de risco…

Além disso, o que os agentes das barreiras sanitários iriam dizer de um respeitável senhor, sozinho num veículo, trafegando pelas estradas, em tempo de isolamento social?

Seguramente não entenderiam que eu estivesse viajando para visitar uma amiga que não pode me visitar porque está retida em razão do isolamento que naquele momento eu não estaria cumprindo.

Iriam me perguntar sobre laços familiares: se somos casados, se vivemos juntos, se somos codependentes…

E não somos nada disso, somos somente dois amigos que se descobriram por serem vizinhos e por causa de uma cadela.

E teria que explicar que mesmo sendo vizinhos não nos conhecíamos até o dia em que, na praça da cidade, ela deixou escapar sua cadelinha. Teria que explicar como, num gesto rápido, eu a segurei pela cordinha da coleira.

Segurei a cordinha da cadela e com ela presa à coleira, consegui me aproximar da vizinha…..

E tudo começou…..

E hoje a saudade me pegou.

Dia 52

17 de outubro de 2026

Ainda não achei uma forma de visitar minha amiga.

Nem achei um meio de trazê-la de volta.

Temos conversado por mensagens de celular.

Mas não é a mesma coisa.

Ela também disse que sente falta de nossos colóquios noturnos: um jantar e uns copos de vinho. Tudo que compartilhamos, em nossas noites de confidências.

E depois…

Sempre ficávamos horas trocando ideias sobre os males do mundo e sobre mosso mundo e seus males.

Eu, sendo realista, confessava minha decepção com a espécie humana.

Se eu fosse Deus, eu dizia, não faria um novo dilúvio nem exterminaria tudo com fogo, como apregoam os fanáticos pensando num fim apocalíptico.

Ela, mais religiosa, me dizia:

Se eu fosse Deus, confidenciava a ela, encontraria uma outra forma de colocar um ponto final na história da humanidade. Apenas aceleraria o retorno apocalíptico de Jesus

E eu dizia mais, explicando meus planos escatológicos: exterminaria a vida humana e promoveria o desenvolvimento de uma outra espécie que fosse mais solidária, mais ecológica, mais interativa com as demais espécies e o meio ambiente.

Divergindo de mim, ela me chamava de louco.

E eu não discordava.

Mas ela tinha outros planos e crenças. Em nome de suas crenças religiosas, dizia que ainda acreditava na humanidade. E que se houvesse uma forma de separar os seres humanos bons dos maus, o mundo poderia melhorar.

Ela tinha fé nisso!

Separados os bons dos maus, sereia possível ajudar os bons a serem melhores e fazer um trabalho educacional para a recuperação dos maus.

E eu ria, debochando de sua ingenuidade de professora.

E dávamos gargalhadas de nossos sonhos absurdos, muitas vezes deitados sobre o tapete de sua sala.

E, em seguida, nos calávamos, refletido sobre o que havíamos dito. Pensando nas possibilidades de realizar os sonhos.

Algumas vezes os realizávamos, ali mesmo, no tapete da sala.

Ela sonhava.

Depois de algum tempo, acordando ao seu lado, dava-lhe um beijo de boa noite e voltava para casa.

Já em meu quarto, em minha casa, eu me pegava analisando a concretização de meu produto, disperso pelo mundo. Sempre acreditei em sua eficiência…

Dia 53

Nestes últimos tempos tenho me mantido recluso.

Já que não posso me encontrar com minha vizinha, fico em casa.

E pelo fato de, momentaneamente, não estar desenvolvendo nenhuma pesquisa, posso dar-me o luxo de gozar de minha situação de aposentado: ficar em casa, contando as gotas de tempo que vão pingando pelo relógio, pendurado na parede.

Cada tic-tac é uma eternidade se comprimindo e escorrendo pela janela do tempo.

Meus dias têm sido como o de qualquer outro brasileiro, nestes tempos confusos.

Os dias revelam-se como uma sucessão de instantes intermináveis e monótonos: TV, leituras, passeios pela internet. TV, leituras, refeições fora de hora. TV, leituras, noticias enfadonhas pelo cotidianos dos noticiários. Viajo pelos canais: telejornais, programas de entretenimento, filmes…

E os noticiários, cada vez mais, chamam minha atenção.

Realmente a pandemia segurou o povo dentro de casa.

Quem diria que teríamos praias vazias?

Quando imaginaríamos estádios de futebol sem bola correndo, sendo transformados em hospitais improvisados?

Mas não é exatamente isso que tem me chamado a atenção. Meu produto deu resultado.

Meio enviesado, é verdade, pois pretendia atingir o povo dos aeroportos, e quem tá morrendo é o povo da periferia.

Meu objetivo não era a morte, em primeiro lugar.

Sempre mirei o presidente: esse baixinho careca que num golpe de campanha fraudulenta, enganou o povo e se fez presidente.

Mesmo dizendo que odeia gay, muitos LGBTQI… e mais algumas letras... votaram nele; mesmo dizendo que as mulheres são putas, muitas mulheres o idolatram; mesmo dizendo que prefere os cavalos ao cheiro dos pobres, os pobres votaram nele… e isso tudo porque lançou a campanha contra corrupção e brandiu o aspirador de pó como símbolo da sujeira que queria limpar.

Ele esqueceu que seu símbolo, o aspirador, não limpa.

Seu símbolo é um acumulador de sujeiras.

Entretanto o que me embeveceu, nisso tudo não foi isso.

Vibrei porque o povo está indo pra rua querendo tirar o presidente.

E não pedem impeachment.

Em uníssono o povo grita: fora presidente!

Isso me faz vibrar.

Mesmo os telejornais que defendem o presidente não conseguem negar: o povo está descontente!

Não me contive e fui ouvir RPM.

E pus pra tocar justamente “Rádio Pirata”, peguei minha guitarra e cantei junto:

“Abordar navios mercantes, invadir, pilhar, tomar o que é nosso

Pirataria nas ondas do rádio, havia alguma coisa errada com o rei.

Preparar a nossa invasão e fazer justiça com as próprias mãos.

Dinamitar um paiol de bobagens e navegar o mar da tranquilidade.

Toquem o meu coração.

Façam a revolução.

Que está no ar.

Nas ondas do rádio.

No submundo repousa o repúdio.

E deve despertar.

Disputar, em cada frequência, o espaço nosso nessa decadência.

Canções de guerra, quem sabe, canções do mar.

Canções de amor ao que vai vingar”

… e o povo, cada dia mais, adere ao movimento de panelaços e piquetes em alguns pontos da cidade, com faixas: “fora presidente!”… talvez o povo, realmente, consiga dinamitar esse “paiol de bobagens”.