DIÁRIO DE UMA PANDEMIA (Dia 57; Dia 58; Dia 59)

Dia 57

26 de outubro de 2026

Hoje levantei-me bem mais tarde que de costume.

Fiquei até a madrugada conversando com o assistente do meu amigo.

Ele não pode me dar muitos detalhes, por dois motivos: ele próprio não sabia muito e o seu sistema de comunicação é monitorado pelo governo chinês.

Pude entender, entretanto, que os americanos tinham forte desconfiança de que a origem da pandemia foi um vírus desenvolvido por seus laboratórios, mas que foi modificado, por outro centro de pesquisa.

E a suspeita recaiu sobre os laboratórios chineses, pois os primeiros casos se manifestaram a partir do centro empresarial de Pequim.

Além disso, como as conversas que ocorreram na universidade também eram monitoradas, os agentes tiveram que entregar à coordenação de pesquisa, um roteiro de perguntas que desejavam que meu amigo respondesse. E, de acordo com a praxe, meu amigo também teve que responder por escrito a esse roteiro de indagações.

Mas essas foram somente as perguntas oficiais, aquelas que foram feitas diretamente ao professor e o que ele respondeu, não aparece nos roteiros...

Entretanto, uma das indagações do roteiro dos americanos era justamente sobre quais outros laboratórios e pesquisadores com capacidade teórica e técnica para manipular vírus dessa natureza e de tão alta periculosidade.

Meu amigo não respondeu a isso, mas no dia seguinte comentou com seu assistente seu receio de que os americanos chegassem a mim.

Não que tivessem algo a meu respeito, mas porque minhas pesquisas em relação aos microrganismos são conhecidas no mundo acadêmico, que me condena por não aceitar a divulgação de meu nome como pesquisador. Mantenho sempre algum estudante sob minha orientação e credito a ele os avanços…

Não quero os holofotes das atenções sobre mim!

Meu amigo, e agora também seu assistente, temia por mim. Mesmo não tendo falado a meu respeito, o mundo acadêmico sabe que sou um dos conhecedores desse tipo de vírus.

Ele temia por mim porque sabe que não estou ligado a nenhum governo que me possa dar proteção, como era o caso dele. Ele conhece a situação dos pesquisadores do Brasil, sabe como o atual governo não os apoia… sabe que nosso governo se vendeu aos americanos…

Meu amigo sabia que, de fato, o vírus se espalhou a partir dos empresários chineses. Entretanto não sabia que isso ocorreu porque o presidente brasileiro manteve contatos e negociações com eles, por ocasião de sua visita à China.

Alguns brasileiros da comitiva presidencial também voltaram contaminados. Mas também isso foi creditado ao contágio com os chineses!!!

O que os pesquisadores do mundo não estão conseguindo entender é o porquê da letalidade do vírus pandêmico ter se espalhado inicialmente entre os ricos e somente depois entre as camadas populares. Também não estão entendendo o porquê do número de infectados das camadas populares ser maior, mas com menos óbitos; e o número de óbitos na alta sociedade ser mais elevado apesar de proporcionalmente menor número de infectados.

O assistente, disse que o professor foi encontrado morto e que fora torturado. Possivelmente pelos americanos que saíram do país, no mesmo dia em que meu amigo fora encontrado morto.

E agora estou aqui: analisando a situação e temendo pela minha vizinha.

Dia 58

27 de outubro de 2026

Ao contrário dos dias anteriores, hoje não saí de casa.

Por várias vezes tentei entrar em contato com a vizinha, mas seu telefone chama e ela não atende.

Sei que ela não sabe de nada sobre minhas pesquisas.

Sei que ela sabe apenas que sou um jovem senhor aposentado.

Sei que não há nenhuma ligação entre mim e o vírus, apesar de ter me utilizado de amostras de meu colega americano. De ter usado laboratório da universidade, onde trabalhei e da universidade em que meu colega trabalha, em Brasília.

Sei que meu produto é quase irrastreável, pois as mutações que nele provoquei e as informações genéticas que nele introduzi, não têm registro na literatura especializada.

Também sei da capacidade e da fantasia dos norte-americanos para provocar e produzir verdades que só são verdades porque eles assim o desejam. Assim foram os casos de Saddam Hussein; de Osama bin Laden; de Muamar Kadafi; de Fidel Castro. Eles eram apenas líderes políticos de seus povos, mas foram escolhidos como inimigos da nação. E assim tudo que os americanos passaram a dizer sobre eles acaba sendo ganhando crédito como verdade.

Mas os gringos não contam que todos esses “terroristas” inicialmente eram apoiados por eles!!!

Também sei que seu atual presidente é tão ou mais louco que o nosso. E, por isso, não será impossível começar a dizer que uma determinada outra pessoa passou a ser o principal e grande inimigo dos Estados Unidos.

Por tudo isso, temo pelos meus colegas, na universidade de Pequim e temo pelos meus colegas em nossas universidades.

Também sei que a literatura e cinema norte-americanos não são, exatamente, ficcionais. Pelo contrário, lá a arte não nasce da fantasia, ela inspira a realidade. A realidade nasce da arte. E, como são muito criativos, muito logo acharão uma forma de fazer um filme que escolherá um vilão e depois as forças políticas e policiais se lançarão em sua perseguição.

Eles dependem desse movimento para faturar na alegria e na tristeza até que a morte seja mais uma fonte de renda.

Tenho que falar logo com minha vizinha.

Não é por nada não.

É saudade mesmo!

Dia 59

30 de outubro de 2026

Passei um dia mais calmo, hoje.

Dei meu passeio pelas redondezas.

Não quero alterar minha rotina.

Se ficar muito tempo sem sair de casa os vizinhos poderão pensar que estou enfermo ou que tem algo de errado.

Mantendo a rotina todos pensam que tudo está normal.

Além disso, as pessoas já está começando a se comportar como se não estivéssemos convivendo com uma situação pandêmica.

O movimento de pessoas pelas ruas e nas lojas e nos mercados e em todos os lugares está beirando a normalidade.

Parece que as pessoas não acreditam que há um vírus mortal solto no ar.

O comportamento das pessoas é sempre assim.

Em todos os temos as tragédias sempre são a principal notícia.

As pessoas gostam de ler, de ouvir, de assistir, de ficar inteiradas a respeito de situações de dor e tragédia.

Ver o sofrimento alheio cria uma situação e sensação pela qual a pessoa que vê a tragédia do outro se alegra por não ser uma vítima da dor.

Aliás, isso já foi afirmado até pela filosofia.

Um louco, alemão, de nome complicado: Nietzsche, disse num de seus escritos que “ver sofrer faz bem; fazer sofrer, melhor ainda”.

É como se a pessoa pensasse assim: “Enquanto eu estou vendo o outro sofrer significa que eu estou bem. Então vou me alegrar com sua dor, pois isso significa que não estou sofrendo. E se eu vir a sofrer ele vai se alegrar por não viver meu sofrimento”.

E, dessa forma, as pessoas acabam acreditando que as dores e tristezas e sofrimentos e enfermidades somente acontecerão com os outros. Acabam acreditando que são imunes às tragédias e dores e sofrimentos que assistem nos outros.

Só acordam quando a tragédia os atinge… mas aí já é tragédia…

E outros assistirão, aliviados, à sua dor!

Possivelmente por esse motivo as pessoas não estão respeitando as quarentenas nem as recomendações de se manter distanciamento entre as pessoas. Dessa forma o medo permanece, mas a sensação de que se está seguro, faz com que as pessoas relaxem na precaução. E para isso o vírus do mal bate palmas, agradecendo por poder se espalhar mais, perpetuando-se!

Então, se eu sair e passear pelas ruas e for ao mercado e não me esconder, demonstrará que eu sou igualzinho a todo mundo.

Mal sabem eles que sou diferente: sei que não posso mudar o nosso mundo.

E porque não posso mudar, vou acabar com ele.

Assim, quem sabe, o planeta possa sobreviver.

Vou manter minha rotina.