MEMÓRIAS DE MARIA

VISÕES DE MARIA

 

Da série:Memórias da minha rua

(16/03/2012)

 

A nossa rua era caminho de sua casa. Nossa casa era o local onde ela costumava “bater o ponto”.

Por vezes chegava ofegante, noutras transparecia-se lépida ainda que os seus mais de 70 anos já conspirassem contra aquela altivez.

Trazia consigo sempre um novo assunto,um comentário sobre a situação do país,uma piada, uma lembrança.

Enturmava-se num chimarrão,vez e outra, um cafezinho e depois tomava o rumo da casa deixando o rastro sutil de sua presença.

Foi numa destas idas e vindas que Maria deixou fluir uma de suas memórias.

Permeado de forte emoção, seu relato expressou o que possivelmente tenha sido uma de suas mais belas lembranças:

“Paulina e Adilino – uma história de amor”

Era um casal de idosos vivendo na linha da pobreza.Tinham-se, apenas, um ao outro.

Moravam de favor numa casa abandonada e, para sobrevivência, contavam com algumas almas abnegadas que lhes saciavam a fome.

Paulina, encarquilhadinha, rosto sulcado de rugas onde o carvão do fogo de chão costumava hospedar-se.Um lenço amarrado à cabeça , miúdez nos passos que arrastavam-se e um sorriso perene, brotado da boca com poucos dentes.

Cativante ! Apesar das mazelas que direcionavam-lhe a existência.

Adilino não era muito diferente. Arrastava ainda mais pesadamente os passos, precisando para equilibrar-se, do apoio de uma bengala .

Ao romper do dia,rumavam em direção à uma leiteria onde potes de coalhada ,farinha de milho e marmelada lhes eram servidos.

Feita a primeira (e talvez única) refeição do dia o casal retornava para o seu abrigo, cruzando pela campina ao redor de um riacho.

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A CENA :

[ Primavera. sol tecendo cores na manhã ]

Maria,num intervalo de aulas (era professora) por conta de seu vício fumava um cigarrinho ao lado de fora da escola.

[ Fumaça desenhando arabescos pelo ar ]

Maria em devaneios , sorvendo a beleza fresca da coxilha não muito distante de seu campo de visão.

Eis que de repente...

Dois miúdos pontinhos vão cerzindo a paz verdejante do campo.

[ Ipês e margaridas lhes abrem passagem ]

Paulina e Adilino cumprindo o rotineiro caminho da volta.

Saciados, alinhavam a campina no desbotado de suas presenças.

Maria, cigarro em punho, Atenta ao cenário .

Uma tragada, um ligeiro suspiro e turbilhão de idéias varando-lhe a cabeça.

Compadecida do casal traça-lhe , em pensamentos ,os rumos que desejaria tivessem seguido aquelas vidas.

[ A vida seria tão perfeita caso seguissem nossos roteiros ]

Alheios aos pensamentos da mestra, segue o par desfrutando os melindres coloridos da manhã.

[ Cerca aramada à beira do riacho ]

Paulina , acocorada,tenta cruzar entre os fios de arame.

Adilino a repreende.

Num gesto de cavalheirismo, repleto de romantismo, força a abertura dos fios,dá a mão à sua dama e a conduz para o outro lado do riacho.

Não satisfeito,colhe um punhado de margaridas brancas,pousa com delicadeza algumas flores atrás da orelha de sua consorte e ,numa breve reverência,entrega-lhe o ramalhete das demais.

Esta o segura contra o peito , dá-lhe a mão e tomam o rumo de seu paradeiro.

Na manhã lavada de sol,a poeira da estrada os faz personagens quase surreais que se vão evanescendo lentamente.

A mestra pisoteia a chêpa contra o chão.

Marejados olhos embaçam-lhe a manhã de primavera e o coração abre-se em cofre de uma relíquia guardada com carinho pelo resto de sua vida.

A sutileza de um gesto tão singelo delineando a força do amor que supera agruras e sofrimentos e faz agigantar-se os corações humanos.

 

 

IRATIENSE THUTO TEIXEIRA
Enviado por IRATIENSE THUTO TEIXEIRA em 14/11/2022
Código do texto: T7649950
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