Alguma coisa sempre acontece no meu coração.

Não. Não é preciso eu cruzar a Ipiranga e a avenida São João. Mas alguma coisa acontece. No íntimo, nas vísceras, na alma.

Uma saudade do tempo que não vivi. Eu simplesmente ouvi falar de um tempo por várias vezes. As cores não me eram nítidas, mas havia um consenso: todos deveriam caminhar na honestidade, na sinceridade e na cooperação mútua, irrestrita e cotidiana.

Eu me lembro da minha avó falando dos tempos em que viveu no bairro da Cantareira. Era um sentimento nostálgico mas sem tanta dor. Das conversas sobre o Mercadão de São Paulo no final da guerra. Da pensão na rua Abílio Soares... quantas vezes ouvi falar dessa rua!!! De lá os meus avós iam a pé até a Sears visitar a loja que não existe mais, e era um luxo só e eles só olhavam e voltavam para a pensão com as mãos vazias. Guardo as falas a respeito do sofrimento do meu avô por não ter um emprego fixo na cidade gigantesca. Eu me lembro de ouvir do esforço da minha mãe na juventude, mal chegada do interior das Minas Gerais, e ir estudar no tradicional colégio Caetano de Campos em pleno coração da Praça da República. Uma vitória retumbante!!!!

Passadas algumas décadas do ocorrido, as lembranças corriam durante a noite, com a televisão providencialmente desligada, antes do café com leite para irmos dormir. Às minhas vistas as histórias de vida não tinham nada de colorido. Eram fotos em branco e preto sempre... e a vida continuava. E mais lembranças: os tios, algumas memórias engraçadas, criativas, histórias de assombração... Lembranças dos doces, das roscas, das broas de fubá que a minha avó fazia para colocar na vendinha na frente de casa.

E a minha alma passeia pelo meu tempo, viajando nas saudades do que apenas ouvi.

E quais as estradas percorridas pelas pessoas que passaram pela minha vida? Procuro no google, encontro apenas algumas. Procuro pessoas que não se lembram de mim. Na juventude eu frequentava muito a casa da Cecília, uma amiga de longas jornadas, mas se afastou de mim decididamente depois de vários anos de convivência porque resolveu se casar por conveniência e sem amor... e isso, para mim, era um absurdo! Uma grande amiga se casar assim??

Procuro a Ana Isabel, inteligentíssima, de riso fácil, de olhar camarada, atenta. Procuro outras pessoas que nem eram tão próximas... procuro.

Procuro mas fotos do meu casamento de quatro décadas os familiares do meu marido... onde eles estão? Todos se perderam com o odiento fascismo. Eles se perderam nos meus sentimentos, nas minhas emoções. Pelo pouco que sei estão muito bem, fadados aos seus preconceitos cinzentos e ao medo do comunismo que não sabem o que é e nunca leram nada sobre. Sobraram vivas desse descalabro a minha sobrinha e sua filha com lucidez e decisão. Não! Não os quero mais. Não dá mais!

Procuro nos pensamentos, procuro nos retratos, nos objetos. E, contente, digo: esse móvel era da minha avó, essa tesoura era dela também, essa televisão dos anos 60 era da minha sogra, o fogão era da tia Leonor, a ampulheta – marcando silenciosa e compassadamente o tempo - ganhei do tio Dante há exato meio século!!! Essa panela Rochedo era da tia Evelina! A colcha de crochê foi a vó quem fez! Eu me lembro dela, sentadinha no puff verde perto da janela da sala na casa da pacata rua Albuquerque Maranhão. O anel que levei à joalheria para ser alargado veio da tia Norma quando eu ainda criança. Do meu pai, sempre me vem à lembrança a compra do meu primeiro par de óculos na ótica A Especialista na rua Barão de Itapetininga.

E vou colhendo sensações, aproximando distâncias, ressignificando separações, revivendo as histórias riquíssimas dos meus antepassados. Revi o meu caderno de primeiro ano primário. Naquele tempo a minha letra era bonita! Eu me esmerava e a professora me estimulava a crescer. Uma história construída de sentimentos, de vibrações intensas e silenciosas e das alegrias quando os tios vinham nos visitar. Vinham com doces de banana de colher, doces de abóbora com coco, tudo feito em casa. O tio Béio trazia também Balas 7 Belo. A tia Evelina me dava uma cartela com 5 chocolates Prestígio e o mesmo para cada irmão, mas eu nunca gostei de Prestígio. Gostava assim – e muito - do carinho e do sorriso manso e bom que vinha junto em cada pacote.

Rezo e, da sacada do meu apartamento, olho para o céu e penso neles. Penso com insistência e os procuro por entre as estrelas. Onde estão? Como estarão evoluindo? Que a existência do agora seja menos sofrida para todos e todas e com mais abraços, sorrisos e prontidão para viver com alegria e contentamento.

Que a caminhada seja de curvas suaves, planas, ensolarada e com sombras providenciais de flamboyant. Bancos de praça com encosto, sabiás como companheiros e muito, muito perfume de jasmim.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 19/11/2022
Reeditado em 19/11/2022
Código do texto: T7653722
Classificação de conteúdo: seguro