Obrigada, sra. Hebe de Bonafini. Eternamente.

Acordo cedo invariavelmente. E hoje, logo ao acessar o jornal, leio a matéria: faleceu hoje, aos 93 anos, a ativista argentina Hebe de Bonafini.

Há mais de quatro décadas tenho conhecimento da existência dessa senhora – humanamente ilustríssima, impecável na sua essência de mulher, mãe e cidadã. E sempre a acompanhei pela imprensa com um imenso sentimento de dor na alma. Da minha parte, um misto de tristeza, indignação diante da condição humana. Indignação por tudo aquilo que um ser dito racional com algum poder de mando pode fazer ao outro: coisas diabólicas, sádicas, indescritíveis, impublicáveis, inimagináveis.

A sra. Hebe foi a luz intensa a brilhar e a combater a selvageria golpista que condenou ao suplício, ao desaparecimento e à morte milhões de compatriotas. Dona Hebe perdeu para a ditadura militar argentina dois filhos, Raúl e Jorge, além de uma nora. E passou a lutar obstinadamente contra o autoritarismo e pelo direito à vida dessas milhões de vítimas do arbítrio.

A ditadura argentina (1976 - 1983) foi uma das mais sangrentas da América Latina, deixando um saldo de cerca de 30 mil desaparecidos. Mas os números podem ser bem, bem maiores. A tragédia, a dor, a angústia, o desespero jamais poderão ser mensurados. Cada coração dilacerado, cada olhar distante, cada noite e dia de aflição... não. É impossível medir, avaliar, imaginar... Um retrato asqueroso do inferno, como em todas as demais ditaduras do planeta.

A sra. Hebe foi uma das fundadoras da Associação Mães da Praça de Maio, que neste ano completou 45 anos de história. Com o lema "reivindicando a luta revolucionária dos nossos filhos", milhares de argentinos marcharam pela capital argentina para lembrar a criação dessa entidade.

Nesse evento, ocorrido no último mês de abril, dona Hebe declarou: “Recordar nossos filhos é aprender o que é a solidariedade, o que é a lealdade. A política não é um caminho para encontrar trabalho, a política é algo que alimenta o cérebro. Algo necessário todos os dias. Não podemos viver sem fazer política".

Relembrando a história : no dia 30 de abril de 1977, dezenas de mulheres argentinas decidiram se manifestar na praça de Maio, em frente à sede do governo, a Casa Rosada, a fim de exigir respostas sobre o paradeiro dos seus filhos que haviam desaparecido sob as ordens das juntas militares que então governavam o país.

E as mães (as madres) passaram a se reunir todas as quintas-feiras para exigir repostas.

"Esta praça serve para isso: para gritar, denunciar, dizer, falar, sonhar. É muito bonito sonhar. Devemos fazer as coisas com alegria e amor. A revolução se faz com amor, não somente com armas", defendia Hebe de Bonafini.

Anos atrás tive a oportunidade de ir a Buenos Aires, mas declinei do convite. E eu me imaginava, eu me via claramente na Praça de Maio, sentada num banco qualquer, chorando, sofrendo empaticamente com aquelas mães, revivendo dores que não passei na minha trajetória pessoal, mas sofri junto conhecedora que sou da História e dos sentimentos humanos. Eu sei: eu ficaria ali horas, parada, sentada, pensando, amargamente contemplando aquele espaço. Eu estaria a pensar e a sentir uma grande parte da dor de uma mãe, de centenas de mães, a esperar a volta dos seus filhos e filhas. Filhos. A nossa melhor parte, a nossa maior causa, o nosso maior brilho. Quando o assunto é filho, a fala é sempre amorosamente superlativa. Filho é sempre maior, é mais que tudo. Simples assim.

Cheguei a esculpir em cerâmica uma “dona Hebe” poucos anos atrás. Ela foi planejada fisicamente larga para que o seu coração e suas dores e esperanças tivessem lugar para se acomodar. O seu lencinho branco está ali, invariavelmente, cobrindo os seus cabelos. Guardo uma lembrança dessa história comigo. Dona Hebe é uma companheira que tenho, simbolicamente, no meio dos meus livros sobre a América Latina.

Siga em paz, dona Hebe. Mas siga feliz. A senhora fez a sua parte de forma única, comovente, maternal, incrivelmente corajosa, humana e cidadã e nunca deixou de amar. Então agora: reencontre Jorge, Raúl, sua norinha. Vivam felizes, se abracem demoradamente. Não, não tenham pressa alguma. Abracem até que lhes doam os braços. Que possam rir e planejar novas oportunidades para serem mais felizes. Acabem de vez com toda sorte de angústias. Enxuguem as suas lágrimas mutuamente. E joguem os lenços molhados fora. E sorriam: olhos nos olhos. Que a estrada de vocês seja linda, primaveril, com sol de meio dia e entardecer alaranjado, cheio de sonhos, suavidade, brilho intenso e que o amor entre vocês possa ser, de fato, eterno.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 20/11/2022
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