Locomotiva

Por mais que eu ancore meus olhos na terra do computador minha cabeça levanta e navega pavimento afora. Penso em ir no estacionamento fumar maconha e voltar compenetrado, denso de fumaça. Cheio de vontade das coisas ordinárias, feliz do meu pró-labore, ardiloso nas mecânicas do processo fabril, empreendedor, como uma locomotiva galgando os km da terra depois de acender. Mas por mais que eu ande todos os passos da terra vezes mil, o entorno continua irrevogávelmente pétreo, meus colegas conversam coisas completamente sem importância, do jogo, do almoço, da cachaça, mas não parecem realmente ter experimentado nenhuma dessas coisas, não parece que sabem o efeito por trás da palavra. Mesmo assim as deliberam, o que é de a próxima partida de mais tarde? Desrresolução.

Eu penso que o Fortaleza vai subir, graças a deus. Gosto de Futebol. Gosto de qualquer um jeito de conversa que me deixe amolecido, morno sobre o prato da cadeira. Mas hoje estou intragável. O teclado do computador do trabalho é um piano de cauda longa na qual tenho que coreografar repetidamente a mesma melodia ambiente inexpressiva, sem contribuir ou desarranjar, sem mexer e todavia chamar de arte, me gratificar da arte. Nunca do artifício. A melodia maior que eu, mandando n'eu. E a insubordinação espreitando, tentação quase incontrolável, se não fosse minha liturgia negar o pecado da vontade. Todos os dias um desejo infuso na água do meu corpo, de entornar esse caldo, por assim dizer, condensando. Todos os dias esse auto-controle temperiando o indigesto, que se há de vender por aí como a maravilha da eficácia da maturidade do adulto substanciado. O efeito do tônico da sabedoria. Penso em me levantar e sair mais cedo do trabalho, tomar o ônibus, almoçar com uma folga maior.

Maquinação possível, dessa vez. Mas apenas sereno, na prática, sereno na terra seca e rachada dos meus miolos.

Percebo que apesar das conversas ao meu redor, estou solitário. Existem as pessoas na sala, que são como mesa, cadeira, existe meu chefe na sua sala que é uma escrivaninha de acabamento mais rebuscado, existe o chefe do meu chefe em outra repartição e existem eles. Tudo que existe é deles, pra eles e sobre eles. Se faço por mim, é a negação deles. Se não faço, é obedecê-los. Quando faço amenidades, para subvertê-los de suas fomes de tensão, é para que depois eu perceba os limites desses momentos. Me levanto, vou embora, 11:30, quando deveria sair apenas 12:00. Trinta minutos programados, como todo o resto. Mas chego perto, chego quase. Ou chego mais quase que antes, coisa de esperança, práticas do último espírito, golpe da última dança . Trinta minutos que meu chefe, do alto de sua própria displicência não vai notar e muito menos anotar. E vale mesmo? Revolta que ninguém vê e ninguém cheira e que não passa de implicância?

Almocei muito bem.

Nia Ferreira
Enviado por Nia Ferreira em 23/11/2022
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