NO TEMPO DO ARACAÉ

No tempo do aracaé, o crescimento da população e consequente povoamento em bairros, cada vez mais distantes do centro, deu significado pejorativo ao adjetivo suburbano.

Naquele lapso de tempo entre os veículos puxados por burros e os automóveis, o transporte do público estava a cargo da iniciativa privada com pouca ou nenhuma interferência das prefeituras.

Para suprir essa necessidade da população surgiram as adaptações de caminhões de carga para veículos de passageiros, considerados por todos como bem confortáveis, corredores largos, convenientes espaços para bagagem sobre as poltronas estofadas e a cortesia dos proprietários que, via de regra eram os motoristas e que, por serem únicos ou raros, se tornavam amigos da clientela, todos os conheciam pelos nomes e se cumprimentavam como bons e velhos amigos.

Na minha infância e parte da adolescência, no Recife/PE, conheci o Sr. Marinho, proprietário, cobrador e motorista da Auto Viação Marinho.

Tratava a todos com a cortesia de verdadeiro comissário de bordo, cumprimentava a maioria dos usuários pelos nomes, muitas vezes descia para ajudar alguém com dificuldades de locomoção e, caso um jovem não desse o assento a qualquer necessitado, ele parava o veículo, ia até o faltoso e aplicava-lhe a reprimenda, perguntando se não tinha visto a pessoa que precisava do assento que ele estava ocupando.

Nos desembarques, agradecia a cada um dos passageiros e, muitas vezes dispensou o pagamento daqueles que lhe pediam gratuidade por estarem à procura de emprego.

Deixo registrada a minha homenagem àquele homem risonho, paternal, ainda bem forte apesar dos cabelos brancos e ralos denunciarem a idade avançada, sempre vestindo terno caqui, camisa branca, gravata e sapatos pretos que tratava a todos como se estivesse recebendo amigos em sua própria casa e que, muitas vezes, ouvi perguntar aos conhecidos postados nas calçadas:

- Não vai trabalhar hoje? Está de folga ou já tirou férias?

Mas, felizmente, o tempo passou e a partir da metade do século passado;

- o crescimento das cidades englobou os subúrbios e suburbano perdeu o conceito pejorativo;

- o poder público determinou que o serviço fosse executado por pessoas jurídicas, estatais ou particulares, e as micro empresas individuais foram tragadas pelas grandes;

- as carrocerias adaptadas deixaram de existir quando o Brasil começou a produzir ou importar ônibus dignos do nome;

- o poder público determinou que o serviço fosse executado com número mínimo de veículos licenciados e vistoriados periodicamente, com definição de rotas e horários, registro de funcionários, fardamento obrigatório, etc.

Claro que houve melhoria do serviço, mas nem sempre é satisfatório por causa do apadrinhamento e pela falta de punição dos flagrantes casos de desrespeito ao contratado que ocorrem todos os dias, principalmente, por não termos a quem reclamar.

A corrupção endêmica estabelecida pelos governos esquerdistas produziu assassinatos e muitos outros casos tenebrosos que denigrem um serviço essencial, que pela importância que tem, por consumir boa parte do orçamento anual das prefeituras e pelo valor cobrado de cada usuário, deveria ser impecável e exemplar em todos os sentidos.

Glossário:

Aracaé = gíria, o mesmo que tempos atrás;

Suburbano = o mesmo que ralé, pobre que não mora em bairro nobre, mal-educado, pessoa com mau gosto.