SADISMO, COVARDIA E AS ALMAS DOS INOCENTES

Nas aulas de Ciências, nós vimos que o maior órgão do corpo humano é a pele, e que ela é formada por 3 camadas: epiderme, derme e hipoderme. No Ensino Médio, nós aprendemos que nossas células se regeneram por meio de um mecanismo chamado mitose, processo em que uma célula-mãe se divide e dá origem a duas células-filhas com o mesmo material genético. Nesse processo, as células mortas vão sendo substituídas, sendo eliminadas com a descamação da pele, enquanto uma camada nova dá lugar à velha.

Quando somos jovens, esse processo demora, em média, 28 dias para ser concluído. Ao envelhecermos esse processo passa a ser mais lento e essa é a razão pela qual nossa pele fica menos viçosa, e menos protegida, permitindo a entrada de invasores. O processo de regeneração das células se dá ou por substituição (cicatrização, quando nos ferimos) ou por regeneração fisiológica.

Uso essa introdução, porque presumo que ambos os processos acima citados tenham acontecido numerosas vezes no corpo franzino de uma menininha de 11 anos, cujo nome, manterei em segredo, por respeito a ela. Chamarei de Clarinha a personagem que conheci em 1990, quando eu atuei em uma escola particular de Linhares, onde eu desempenhava funções similares às de uma orientadora educacional. Entre as minhas atribuições estavam a de conversar com os alunos que não tinham feito as tarefas de casa, e/ou que não estavam obtendo boas notas. Não me recordo, mas creio que o caso dela era o segundo.

Ao conversar com aquela garotinha que cursava a quinta série, reparei manchas roxas nos braços e questionei as causas. Em meio a grossas lágrimas que escorriam pelo seu rostinho delicado, eu fiquei sabendo não apenas as causas de ela estar tendo dificuldades de aprendizagem, mas, também, as origens das marcas nos seus bracinhos: seu pai determinava coisas absurdas para ela e seus irmãos, entre elas: acordar às cinco da madrugada (sem o uso de despertador) todos os dias. Apesar de ter mãe, era dela a tarefa de fazer o café para todos, enquanto um irmão se encarregava de comprar os pães e os demais iam se revezando nos banhos frios, antes de irem sozinhos para a escola. Certa vez, ela perdeu a hora e foi acordada com um balde de água fria no rosto.

Poucos dias antes de nossa conversa, Clarinha (sua família tinha posses, tinha fazenda, morava em um bom prédio localizado na BR 101...) fora empurrada pelo pai, escada abaixo, simplesmente, porque ela lhe pedira para assinar o boletim que precisava levar para a escola, pois nele havia duas notas vermelhas. Essa era a origem das marcas roxas nos seus braços.

Soube que ele costumava levar os filhos para a fazenda, apontar uma árvore para cada um deles e determinar que estudassem tabuada, pois, ao final da tarde, ele assoviaria, sinalizando a hora de voltar para que ele checasse os conhecimentos matemáticos. Se alguém errasse alguma pergunta, levava tapas ou surras, dependendo do número de erros.

Um dos castigos prediletos daquele homem, era mandar os filhos irem para a laje, ao meio-dia, com o chão superaquecido pelo sol, catar, durante uma hora, um a um (não podiam juntar com as mãos), o que ele jogasse no chão: grãos de milho ou de feijão. O sujeito era tão sádico que, certa vez, ele colocou os cinco filhos em fila e neles bateu com uma correia de ventoinha. Após cada surra, ele obrigava os filhos a tomarem banho com água, sal e vinagre.

Chorei na frente dela e decidi que iria chamar aquele senhor para conversar seriamente com ele. Recordo-me da tarde em que ele foi à escola e de que eu tive medo de lhe contar o que eu sabia e acabar prejudicando mais ainda a Clarinha. Deus deve ter me iluminado, porque consegui conversar sobre os requisitos da boa aprendizagem, reforçando que a paz e o amor na família são fundamentais para tal. Discorri sobre o que é amor e sua importância para a saúde mental das pessoas. Ele me ouviu de cabeça baixa e isso me intrigou muito, pois essa atitude costuma revelar que o sujeito tem muito a esconder e que pode ser perigoso, se descobrir que alguém conhece a sua alma horrorosa.

Não me recordo dela como uma de nossas alunas nos anos seguintes; presumo que ele a tenha transferido para outra escola. Recentemente, porém, ao atender o convite de alunos de uma escola municipal para receber uma homenagem; eu a encontrei ali trabalhando. Não a reconheci, mas ela o fez rapidamente, exclamando: “Tia Norma, você se lembra de mim?” Eu reconheci aquela voz na hora, abracei-a fortemente e a beijei demoradamente nas bochechas. Ali estava uma mulher, mas dentro dela morava a menininha que há 32 anos me fizera chorar com sua história.

Posteriormente, conversamos por WhatsApp e eu soube de muitas outras coisas que aconteciam na época: quando era dia de provas, nenhum filho podia dormir, eram obrigados a estudar a madrugada toda. Ela não podia conversar com nenhum coleguinha da escola, principalmente se fosse menino e se o fizesse tomava uma surra. Certa vez, como ela não escovara os dentes em três minutos como seu pai determinara, ele a jogara na parede, ferindo a sua cabeça, originando um tumor que, aos 17 anos, precisara ser operado.

Por fim, soube que aos 26 anos de idade Clarinha desenvolvera câncer nos intestinos, que fora operada, estivera em tratamento, mas naquele momento se sentia curada. Nessa ocasião, seu pai fora visitá-la, levando rosas brancas e lhe pedira perdão pelas maldades que lhe fizera na infância e adolescência. Esse gesto fê-la chorar copiosamente. Talvez, naquele momento, tenha acontecido a catarse que curou seu corpo, talvez ali tenha sido interrompida a raiz perigosa do sadismo, que costuma continuar se reproduzindo nas gerações seguintes, cometendo covardias que marcam, indelevelmente, as almas dos inocentes.

NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 01/12/2022
Reeditado em 02/12/2022
Código do texto: T7662403
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.