A DOR DE UM PAI

Guardo muitas lembranças da minha infância, mas uma delas se destaca fortemente em minha memória: a música "Ave Maria" de Gounod, um clássico da ópera que ecoava pelo alto-falante da igreja onde morei até meus 18 anos, ainda um vilarejo à época, chamado Santa Clara D'Oeste. Mesmo sendo entoada por um tenor com uma bela voz, e em latim, a música me causava arrepios na alma ao ouvi-la, pois estava sempre presente em momentos tristes e fúnebres. A melodia do disco de vinil ficou gravada em minha mente como uma das lembranças mais marcantes da minha vida.

O ponto mais expressivo, era que a música só era tocada para anunciar o falecimento de algum morador do município, e não tinha hora para ir ao ar. Quando começava a tocar, a população parava por alguns minutos, até que o locutor anunciasse o nome da pessoa que partia desta vida, sempre seguido do bordão: “a família tal, cumpre o doloroso dever de comunicar o falecimento de...”, e isto durava pelo menos por uns 20 minutos.

Muitas vezes, éramos acordados de madrugada com aquela música fúnebre, e muito embora seja um clássico mundial, para nós crianças, quando tocada, só servia mesmo para trazer notícia ruim, e isto às vezes era desesperador. Claro que, ainda hoje, quando a ouço, não tem jeito, e minhas lembranças alcançam aquele tempo.

Numa ocorrência dessas, de anúncio fúnebre, e lembro-me que era bem novo ainda - acho que tinha menos de 10 anos - o alto-falante começou a tocar a música, e o locutor, na sequência, anunciou o falecimento de um jovem, o que era raro, já que sempre esperávamos que alguém de idade viesse a falecer.

Tratava-se do filho mais velho dos homens, de uma família grande, e tínhamos até uma certa proximidade, pela amizade com a irmã dele, que frequentava minha casa. De família muito conhecida na cidade, o pai tinha uma espécie de marcenaria ao lado da residência, onde aconteceria o velório, comum naqueles tempos, quando ainda não existia no município, um local apropriado para isto.

Ainda muito criança, tinha muito medo de velório, mas pela amizade com os irmãos, me aproximei da casa, na tentativa de marcar presença e fiquei mais próximo da oficina.

Num determinado momento, achei estranho ouvir barulho dentro da oficina, como se alguém tivesse resolvido trabalhar, o que convenhamos, era uma situação muito estranha, diante daquela situação.

Curioso, então, para entender o que estava acontecendo, me aproximei de um lugar que desse para observar dentro da oficina, quando vi o pai do rapaz, “seu” Luiz Cearense, como era conhecido, trabalhando num conjunto de tábuas, e o que descobri foi de doer o coração e a alma: ele simplesmente estava montando o caixão para enterrar o próprio filho.

Difícil imaginar que, como se já não bastasse a dor da perda do filho, seu braço direito à época, o pai ainda tivesse a calma necessária para escolher a madeira certa para ser trabalhada e que iria ser utilizada para a montagem do caixão, que receberia tinta na cor azul, me lembro, onde descansaria o corpo.

O tempo passou, e numa das visitas que fazia constantemente à família, coincidiu de ouvir uma música no tal alto-falante, seguido do anúncio fúnebre, e quando questionei sobre não ser a famosa música “Ave Maria de Gounod”, fui informado de que o disco havia quebrado e improvisaram outra, mais leve, o que era um alivio para a população.

Com o tempo, o vilarejo cresceu, virou cidade e ganhou um velório municipal, mas como o alto-falante da igreja já não alcançava toda a população, um carro se som saia pelas ruas avisando os munícipes.

Parece que, como advento da pandemia, até o carro de som foi deixado de lado, e as tais “redes sociais”, com sua velocidade impressionante de divulgar notícia, principalmente ruim, passou a estar mais em voga.

Aaaaveee Maria...!

...

Segue a vida...!

Dezembro de 2022

ZAINE JOSÉ
Enviado por ZAINE JOSÉ em 04/12/2022
Reeditado em 02/04/2023
Código do texto: T7664569
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