A inacreditável sorte que alguns têm

“Eu ainda fico me perguntando como você conseguiu essa mulher”, a irmã o presenteou com esta jóia conforme observava, ao seu lado, sua mulher se afastar de encontro ao mar depois de lhe dar um beijo, as palavras nadando num tom meditativo, a cabeça de cabelos vermelhos (sob aquele sol, eles pareciam mesmo estar em chamas) num balançar de franca incredulidade. Ele olhou para a pirralha de soslaio e sorriu. Um sorriso sem-vergonha, veja bem, um sorriso que dizia “ah, se você soubesse…”.

*

A noite é de setembro de 2014, o teatro é o Teatro João Caetano, no Centro do Rio, a peça, “A Tempestade”, do senhor William Shakespeare. Aquele é o seu primeiro encontro “oficial” e ele quer impressioná-la. O problema é que o infeliz não entende bulhufas de teatro, muito menos de Shakespeare. Até procurara ler a peça, quando ela confirmou a compra das entradas, mas o texto era difícil, confuso, maçante, não entrava na sua cabeça, e ele esquecera a ideia; recorrera ao YouTube, então, mas isso também não deu certo – versões da peça, críticas e audiolivros, nada passou pela sua paciência –; aí lhe restara o filme como última opção, que ele “vira” (as aspas estão aqui como representantes fortes do sono), mas não gostara – mau sinal. A peça começa, tudo vai muito bem – bem o suficiente para fazê-lo pensar, cá com seus botões e ligeiramente orgulhoso de si mesmo, se, vejam só, ele afinal não gostava de Shakespeare –, até vir o primeiro bocejo. Nada demais, ele pensa cá com seus botões outra vez; apenas um escancararzinho de boca; casual, natural, acontece com todo mundo… Mas, como uma tragédia que puxa outra, quando menos se dá conta, lá está ele outra vez, fazendo da boca um portal para uma outra dimensão. E de novo, e de novo, e de novo, até que, lá pelo meio do terceiro ato (especificamente, na cena em que Ariel, sob a forma de uma harpia, entra em cena agitando as grandes asas sobre a mesa), ele atinge a supremacia, a apoteose dos bocejos. Isso o faz provar um instante de profunda letargia, ele parece flutuar – é como se sua alma saísse do corpo e em seguia retornasse… “Bom demais”, pensa ele satisfeito. Passada essa catarse, ele relaxa sobre o assento e crava os olhos novamente no palco; olhos tão marejados que por um momento ele enxerga tudo embaçado e através de prismas; ele pisca, então, e uma lágrima desliza pelo canto do seu olho abaixo.

Nesse momento, ele sente mãos apertarem seu braço e se vira para o lado. Ela o olha – ele pode jurar, tem a mais absoluta, maravilhosa certeza – apaixonada e cheia de ternura e diz, num quase sussurro: “Oh, que fofo…! É mesmo emocionante, não é?”

Tino Nenhures
Enviado por Tino Nenhures em 13/12/2022
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