ZICADO

"ZICADO"

(Por Leandro Severo)

"Zicado" é um neologismo criado pelo brasileiro para denominar alguém sem sorte ou desventurado. Originário da palavra "ziquizira", tendo o mesmo significado, é atribuída as pessoas que estão numa fase ruim ou àqueles que, independente do que façam, dará errado.

Foi assim que me senti ontem.

Começou quando estava de saída para a escola em que trabalho. Levanto às 5h20 da manhã. Meu horário de entrada é às 7h. Pego meu ônibus às 6h10 no máximo, vou até o ponto final e ainda tenho mais quinze minutos de caminhada até chegar.

Minha linda esposa dissera anteontem que eu poderia usar seu passe (em São Paulo, Bilhete Único), mas não o encontrava em lugar nenhum. Não queria despertá-la, então insisti na busca silenciosa, porém frustrada.

Ela dormia maravilhosamente como um anjo. No entanto, para virar um demônio, basta acordá-la. Era o que tentei evitar o tempo todo enquanto procurava qual Indiana Jones pelo passe perdido.

Estando já muito atrasado e correndo o risco de perder o horário do ônibus, chamei-a.

- Onde você colocou esse bendito bilhete, vida? Eu estou atrasado.

A donzela ergueu-se da cama como um Tifão. Um raio trovejou no céu, inclusive.

Vasculhamos onde foi possível e nada de o acharmos. O tempo passava. Eu, cada vez mais atrasado. Ela, mais irritada.

- Leandro! - pelo tom de voz pensei que iria jogar uma panela - Por acaso você não já pôs ele ontem na sua carteira?

- Está louca, mulher? Você disse que eu devia pegar o cartão nas suas coisas, mas não tem nada lá. Acha mesmo que eu iria ficar procurando à toa esse tempo todo?

Até que abri a carteira.

Já estava lá.

Meu anjo doce voltou ao seu quarto depois de ter me despedido com palavras "amáveis e meigas".

Saí de casa preocupado com o horário. De todos os que lecionam ali, eu sou o que mora mais longe e dependo de um ônibus específico para evitar atraso. Fora os quinze minutos de caminhada.

O celular vibrou em meu bolso. Uma mensagem da direção da escola:

"Queridos, horário especial! Hoje começaremos às 8h00."

Chegando lá, cumprimentei os poucos professores e funcionários que haviam. Época de final de ano. Não tinha aluno. Era dia de fechamento das notas.

Às 8h30 nos reunimos para o Conselho. A coordenadora pediu que déssemos o veredito sobre os alunos que passaram ou não, chamado de Quinto Conceito. O procedimento era simples: bastava colocar "Aprovado" ou "Retido" nos nomes que estavam na lista.

Eu tenho cinco salas lotadas.

Para isso é necessário ter fechado as notas do quarto bimestre (coisa que eu não fizera ainda), do contrário nenhum registro seria salvo.

Foi o que aconteceu. Quando fui conferir, nada estava salvo. Precisaria fazer tudo de novo. Sozinho e do zero.

Lembrando: eu tenho cinco salas lotadas.

Terminado o expediente, meu ônibus de retorno demorou mais que o normal.

Desmaiei de sono no assento durante a viagem. Acordei com o barulho do meu celular caindo de quina no chão do veículo. Quase passo do ponto. Há males que vem para bem. Poderiam vir com película pelo menos.

Em casa, enquanto lavava a louça, senti vontade de consertar (sem que estivesse quebrado) o ralo da pia.

Minha esposa, que está de homeoffice, ao ver a cena, estranhou:

- O que você está fazendo, Leandro?

- Acho que o ralo está entupido. Vou desrosquear o cano para tirar a sujeira.

- Amor, cuidado! Se não vai molhar o balcão inteiro por dentro com água suja.

- Relaxa. Sou filho de pedreiro (isso é verdade). Vi meu pai arrumar isso várias vezes (também era verdade). Sei o que estou fazendo (era mentira).

Abri a porta do balcão. Afastei as panelas e plásticos que estavam guardados. Desrosqueei o cano. Abri o ralo. Tirei a sujeira do ralo. Fechei o cano. Organizei tudo ali dentro. Fechei a porta do balcão.

Tudo certo.

Abri a torneira.

Encharquei a sala. O cano estava mal rosqueado.

Tirei tudo que estava ali. Sequei freneticamente a madeira do balcão morrendo de medo daquilo estufar. Enxuguei os plásticos e panelas (algumas recém-compradas). Tudo isso sob o olhar sanguinário do vigia, que era minha esposa.

Ao terminar de secar o chão, o móvel, os plásticos e as panelas, rosquear corretamente o cano e testar inúmeras vezes se vazava ou não, comecei a guardar os objetos. Cego de ódio.

E sem querer dei um chute nas panelas. Justo as novas! Tinha que ver. Fez um barulho daqueles.

Minha esposa, que minutos atrás estava com raiva, passou a rir baixinho da minha cara.

A noite, eu e ela fazíamos piadas com toda essa situação. Tive fome. Perto do prédio onde moro fica um churrasqueiro. Queria uma carninha assada.

- Amor, vou lá comprar dois churrascos. Quer um?

- Tô sem fome. Só não demora. Onde você vai comprar? Perto do Supermercado?

- Aqui do lado de casa.

Saindo do prédio, não tinha churrasqueiro nem viva alma na rua. Persisti:

- Vou comprar perto do Supermercado.

Enquanto caminhava até lá, uma chuva fina dava sinais de que alguma coisa ruim estava para completar minha "zica" do dia.

O Supermercado fica uns dez minutos a pé da minha casa, depois de atravessar um ponto de ônibus que estava repleto de gente.

A senhora que me atendia aparentava cansaço, pois vagarosamente colocou meus espetos de carne para aquecer.

- Me vê mais um, senhora. De queijo branco, por favor.

Ela colocou na brasa. E saiu.

A gentil churrasqueira demorou tanto para voltar que, quando tirou-os do fogo, os três pareciam de carne.

Paguei. Fui para casa.

O ponto de ônibus continuava cheio.

Próximo a ele havia uma poça enorme de água que se formara por causa da chuva.

Andava pela calçada quando, de repente, um carro maldito passou por cima da poça, fazendo com que eu tomasse um banho de água suja na frente de todos.

O Destino se vingara pelo ralo? Não sei.

Sei que cheguei em casa fedendo e rindo. Eu da situação. Minha esposa, de mim.

Ontem foi um dia complicado, mas creio que a "zica" não dura mais que vinte e quatro horas. Todos nós temos momentos bons e ruins. Se existe alguma lição para extrair disso tudo, deve ser entender que nem sempre há uma lição. Somente suportar e seguir sem reclamar, pois a vida é assim.

Hoje saí de casa sem atraso. Peguei meu onibus no horário. O sol está brilhando para mim.

Suspeito que o dia será maravilhoso. Começamos muito bem. A zica foi embora!

Porém, antes de descer do ônibus, uma chuva forte começou. Abri a mochila. Acabo de perceber que esqueci o guarda-chuva em casa.

E ainda tenho mais quinze minutos de caminhada.

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 13/12/2022
Reeditado em 14/12/2022
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