Lembranças de infância I: o almoço do domingo

Trago essa memória como a melhor da minha primeira infância: o almoço do domingo. Eram só nos três: meu pai, minha mãe e eu. O almoço era servido em tigelas craqueladas, na mesa de fórmica comprada no Mappin, sem toalha, por ser vistosa. Durante a semana, as panelas vinhas à mesa, sobre suportes térmicos para não queimar sua superfície. Mas no domingo tudo era diferente.

O menu era o mesmo, mas sempre com um gostinho novo, a cada domingo. Salada de alface com rodelas finas de tomate e cebola e um inesquecível toque de açúcar. Até hoje não consigo comer salada de alface se não tiver açúcar. A estrela do almoço era a galinha assada numa panela de ferro, até ficar bem dourada e macia e produzir um espesso fundinho na panela.

Os acompanhamentos eram arroz branco, uma lata de ervilhas Jurema aquecidas com uma generosa colher de manteiga que deixava o caldo cremoso e batatas cortadas em rodelas e fritas até ficarem bem crocantes. A casa toda ficava perfumada com cheiro de infância feliz. Frutas na sobremesa e, para beber, eu tinha uma garrafinha pequena e bojuda de Cerejinha, com aquele gostinho de Tubaína infantil.

A galinha saia da panela de ferro e seguia para uma travessa onde era cortada em pedaços por minha mãe. O arroz era posto na panela de ferro e mexido até todo aquele fundinho se desprender e se incorporar ao arroz, dando-lhe cor e sabor.

Como uma galinha tem só duas coxas e nós éramos três, acho que foi meu pai que sugeriu que a cada domingo dois de nós ficássemos com as coxas, mas tirássemos um pedaço cada um, para dar ao outro que ficara sem. Assim, eu aprendera a importância do dividir. O fígado e o coração eram sempre meus, mas eu também passara a dividi-los com meus pais.

Outra lembrança que me vem à mente é a alegria do meu pai, na mesa farta, de poder agora viver neste Brasil. Meus pais viveram a II Guerra na Europa e passaram fome, muita fome. Na nossa casa jamais se jogou alimento fora; tudo era ingerido ou reaproveitado. Sinto um dó tão grande quando me deparo com desperdício de alimentos, prática tão comum no nosso meio.

Meu pai nunca imaginou que um dia poderia comer galinha toda semana com sua família, muito menos carne quase que diariamente. E as frutas? Ele dizia para minha mãe como era bom poder escolher e comprar aquelas maravilhosas bananas, laranjas e mexericas. E comprá-las não por unidade, mas por dúzia! Quanta fartura, meu Deus!

Depois do almoço, eu costumava ajudar minha mãe a guardar os restos que seriam consumidos no jantar do domingo ou no almoço da segunda-feira. E sempre beliscava mais algum pedacinho de carne e, principalmente, as poucas batatas crocantes que poderiam ter sobrado. Minha mãe ensinava que batata frita não pode sobrar; tem de ser consumida ainda quente e crocante.

Essa mesma mesa de fórmica serviu durante anos para abrigar a gigantesca massa para o delicioso Apfelstrudel e para a massa de macarrão feito em casa, tudo aberto com rolo feito a partir de um bom cabo de enxada, longo e grosso, bem lisinho. Um capítulo à parte!

René Henrique Götz Licht
Enviado por René Henrique Götz Licht em 16/12/2022
Código do texto: T7672851
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