A Crônica do Pavor

Nascer mulher no Brasil é como uma determinação judicial: o julgamento surge desde o primeiro choro e, diferente de uma condenção com possibilidade de remissão, a sentença pode ser prisão perpétua com um alto risco de conversão à pena de morte. Da roupa que veste ao lugar que frequenta — se é beata, torna-se chata, “encalhada”, digna de pena. Se é ousada, arrasta consigo o fardo de ser “demais” para o que deveria ser “de menos” . Afinal de contas, existe vantagem em ser mulher?

Antes que me ataque, repreendo desde já o seu pensamento dissociativo transvestido de opinião. Não pedi pitacos, tampouco pedi para nascer e me tornar mulher nessa sociedade tão desastrosa.

Não se trata de um texto feminista, a pauta não é essa — embora saiba que se hoje eu posso escrever livremente, sem censuras ou pseudônimos, devo a gratidão eterna àquelas que arriscaram a vida pelos direitos que chegaram - ainda que tardios - a mim a às minhas antepassadas.

Esse texto, na verdade, é um grito de desespero. Um grito de angústia por ser mulher — e se você não é mulher, jamais entenderá a complexidade desse sentimento.

Por trás de uma falsa feminilidade imposta desde o primeiro conjuntinho cor de rosa com o combo da primeira violação ao corpo - o incipiente furinho na orelha — há sobre nós uma imposição descabidamente patriarcal que perpassa gerações a fio.

“Você nasceu para ser perfeita” — é o que as capas das revistas de todo o mundo publicam ativa e atrativamente.

Unhas impecáveis, cílios alongados, pele colagenada — nada de marcas da idade, por favor! Cabelo permanentemente alinhado, maquiagem no grau. E o corpo? Ahhhh, esse deve ser modelo “tipo exportação”. Depilação, silicone, cirurgia até no dedão do pé. "Você deve envelhecer sem parecer velha e esse é o nosso segredo, ok?!"

Até que ponto nos submetemos ao bisturi elétrico unicamente baseadas em nossas vontades? Até onde somos induzidas a ter o “corpo do verão”? e quem foi o louco que inventou que o verão tem corpo?

Eu poderia facilmente dedicar o restante dos meus dias a narrar os fatos a que somos expostas, julgadas e condenadas diariamente. Quando minha filha nasceu, senti a maior alegria do mundo em ser mãe de uma menina — mas senti também o maior medo do mundo por ser mãe de uma menina. Um paradoxo que me faz pensar, desde então, na vulnerabilidade a qual somos submetidas em tempo e fora de tempo.

Nos culpabilizam pela educação dos filhos caso ela fracasse. Nos incitam à competitividade. Nos condenam por escolhas que às vezes nem gostaríamos de tomar. Nos paralisam pela decisão de seguir em frente. Nos matam muitas vezes por nascermos, e sermos, mulheres.

“Dizem que a mulher é o sexo frágil. Mas que mentira absurda!” — quem nos dera, Erasmo Carlos…

Essa sociedade deu errado. Deu muito errado.

Hoje, em Pernambuco, Claudia e Aline partiram sem chance alguma de despedida. Hoje duas famílias choram. Hoje uma menina fica órfã e uma legião de mulheres sentem com pesar essa tragédia que se estabeleceu sob as nossas cabeças. Entretanto, infelizmente, não é uma exclusividade do meu estado a patente de um choro dilacerante que ecoa aos quatro cantos. Há mães que perderam suas filhas e filhas que perderam suas mães em cada metro quadrado desse país de meu Deus — e por falar Nele — por onde anda que não vê isso tudo? (...)

Vomitei esse texto/opinião/crônica com o objetivo de desaguar essa angústia que cerceou a minha paz.

Maya Angelou, mulher negra e poetisa norte-americana, disse que “toda vez que uma mulher se defende, sem nem perceber que isso é possível, sem qualquer pretensão, ela defende todas as mulheres.” E é assim que deveria ser. É assim que deve ser.

Em memória das que se foram hoje, das que se foram em ontem, e pela luta contínua para que nenhuma de nós se vá sem que tenha a chance de viver livremente e dignamente.

Que não nos tirem o direito de viver e que a deusa da justiça que exibe uma espada e uma balança retire, imediatamente, a venda dos olhos para que possa nos enxergar.

Lívia Couto
Enviado por Lívia Couto em 20/12/2022
Reeditado em 20/12/2022
Código do texto: T7676519
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