BALANÇOU.

Eu vinha da cozinha em direção à sala, estava afoito, ansioso e muito triste. Sangrando pela ferida da cruel lança do duplo luto. Quando passei pela copa algo aconteceu. Senti um toque inesperado, assustei-me. Um toque de algo frio e pesado me fez conter a pressa e olhar para o lado. Ouvi um Tim-Tim, como se dois objetos de metal estivessem se chocando. Então parei e percebi o que havia acontecido. Eu havia esbarrado numa imagem do sagrado coração de Jesus e esse ato descuidado deslindou um mundo de sensações.

A cena ocorreu em setembro de 2012 poucos dias após a morte de meus pais, para quem não sabe eles morreram na mesma semana. Logo após os falecimentos minha irmã pegou as duas alianças deles, colocou-as em um cordão e pendurou no pescoço do bom Jesus. As alianças amarelinhas que nem manga madura, feitas de ouro puro, a de mamãe mais fina, a de papai um pouco mais espessa ficaram ali penduradas aguardando qual seria seus destinos. Eu passei por ali, esbarrei na imagem do santo, e então as duas se encontraram, fizeram tim tim como em um brinde. E o balanço delas balançou tudo aqui dentro. Balançou lembranças e momentos. Na hora pensei: E não é que esse trem dá um ótimo poema! E me perdi por alguns instantes deixando o passado balançar dentro de mim.

Aqueles objetos balançaram em momentos de doença e de dor, já nas estreitas estradas do fim, talvez fossem dois faróis amarelos a iluminar os caminhos da dor e fazer crer que tudo valeu a pena. E a cor dourada talvez fosse similar ao dourado dos campos eternos que trilhariam depois da missão cumprida.

Aquela aliança mais fina balançava enquanto lavava as vasilhas da janta, ou quando esfregada a roupa. Balançava no alegre cuidar da casa. Balançava enquanto o amor era distribuído por todos os cantos.

Balançou também ao acarinhar um ventre crescido e ao embalar certo berço no doce e terno ato de ninar. Para embalar o chorão com certeza balançou muito.

Aquela aliança mais grossa já balançou sobre os teares, ou para enxugar o suor da testa e tentar conter o cansaço e o sono em árduas madrugadas de labor e luta. Também já balançou enquanto a mão manipulava o martelo na construção de um novo brinquedo para o menino ou de utensílios para a casa. Já balançou a favor do uso da engenhozinho e da criatividade.

Balançou também enquanto as mãos faziam gestos frenéticos durante a narração de um causo ou a distribuição gratuita de bons conselhos.

Balançou indicando os caminhos, mostrando a direção e também distribuindo amor.

E os dois divinos arcos dourados, elos que aprisionaram o amor, balançarem demais por aí. Balançaram nas manhãs, nas tardes nas noites, balançaram no aplauso para o primeiro passo ou para a primeira palavra do pequeno menino, balançaram na agonia da febre nas madrugadas, embalando para conter o choro, na primeira comunhão, nas festas, nas formaturas, no parabéns para você... Na alegria, na tristeza, na saúde e na doença... Em todos os momentos. Balançaram na construção do emaranhado desta esplendida teia do viver.

E fui assim balançando a imaginação e viajando para outras eras, em poucos segundos vivi mil coisas e fiz milhares de cogitações. E pela força da imaginação cheguei ao dia das grandes bodas. Ao glorioso 28/12/1967. Aquele dia em que a esperança ocupava todos os espaços, e as ilusões giravam como em um carrossel numa roda de insanas ilusões. Dia em que tudo era festa e jardim florido, o sonho de eternidade circundava o altar e que nem se ousava cogitar a ideia da efemeridade. Dia do começo da grande história. Vi as alianças balançarem e também se chocarem naquele pequeno pratinho enquanto eram conduzidos para cumprir sua missão de ser elo de eternidade. Até ouvi o tim tim ecoando pelas contornos e torres da nossa velha matriz. Outro tim tim no momento que iam do pratinho até os dedos. E balançaram bastante com o incessante movimento nas mãos trêmulas pelo nervosismo, e cheias de expectativas.

Dois objetos uma promessa. Uma porta aberta conduzindo ao caminho da esperança, rebentos e continuação do eterno ciclo do viver. A realidade salpicada de pedras e flores, de mágoas, amores, de altos e baixos, de dia a dia e de tudo o que é vida .

E o elo se fez, e o ouro delas brilhou, e a vida aconteceu. Tudo para terminar nesse esbarrão e nesse balanço.

Dizem que um bom texto não pode ter palavras repetitivas, então me lasquei nessa porque balancei demais a palavra balançar, mas o que posso fazer se as coisas balançaram com aquele balanço? Balançou a lembrança, a saudade, os momentos... e eu me senti ali no meio daqueles dois arcos divinos como parte deles.

Mudei meu percurso, fui até o quarto ligar o computador para fazer o poema. Mas o cordão ainda ia de um ponto a outro e as duas alianças ficaram lá balançando toda uma história. Uma história maravilhosa. Sempre juntas...