O DIA QUE A TERRA NÃO PAROU.

"Chegou o dia do meu aniversário. Tudo bem. Vou ao Rio de Janeiro comemorar com alguns amigos. Levantei cedo, coloquei as malas e o cachorro no carro e depositei toda esperança que meu dinheiro não acabasse como acabou no ano de 2003, quando fiquei numa pindaíba terrível, que me fez odiar todos os rostos saudáveis anunciados nos comercias de televisão. São uns boçais, uns merdinhas com hora certa para morrer e nem sabem, pensava. Fodam-se todos! tenho paciência, tudo vai melhorar. Era uma frase que eu repetia enquanto descia a ladeira do bairro de Santa Teresa, com quinze centavos no bolso - moedas que um amigo desprezava em um cinzeiro assim que voltava do trabalho - a fim de comprar dois cigarros a varejo. Detalhe: cada cigarro custava dez centavos, e eu tinha que prometer ao dono do estabelecimento, que ficava próximo à entrada do morro, que iria quitar a dívida no dia seguinte. 'O senhor não se preocupe que amanhã pela manhã eu trago os cinco centavos, sem falta', afirmava convicto de que as moedas continuariam sobrando no bolso do meu amigo. Criava-se ali uma linha de crédito direta, uma relação de confiança. Imagino o que o dono do boteco pensou 'Esse aí deve ter se rendido as drogas'. De fato, com 11 quilos abaixo do peso, era alvo fácil para as mais livres associações, as possíveis e as inimagináveis. 'Onde há droga, existem drogados'. Li essa frase na entrada de uma casa que servia de 'boca' num moro do Rio. Tinha uns 17 anos, fui pegar um pó.

Bermuda larga, chinelo Rider e camiseta no ombro. Esse era o retrato da felicidade que tanto buscava. Fora o calor, que fodia com a minha razão, me consumia a tal ponto, que eu achava que naquele lugar e naquelas condições seria selado o meu destino. Quase enlouqueci. Sabe o que é sair do banho, se secar, e em seguida secar o suor do corpo?

Isso, estrada é sinônimo de esperança. Siga em frente e tente não se aborrecer com a idéia de ficar seis horas mudo dentro de um carro. O carro até que ajuda, é confortável. Um, dois, três, sete pedágios! Pombas! Que ignorância de quem decretou que aniversário deve ser comemorado, que natal deve ser comemorado, que ano novo deve ser comemorado, que finados deve ser comemorado e tantas outras datas devam ser comemoradas. E se fossemos todos buscar sei lá o quê sei lá onde? E começa a chover e eu já não posso fumar dentro do carro e o cachorro baba e quer comer e eu quero voltar pra casa. Super-recomendável a experiência. 'Aproveite, você só tem uma vida', essa é uma das medíocres frases que me fazem agir justamente de modo contrário. Reconfortante? Finja ter quando não tem, ou, finja ser quando é.

Baixada fluminense. Já experimentou num churrasco, quando um amigo diz 'sente aqui o cheiro da carne', e na verdade o que se sente é a brasa queimando a própria face? Pois bem, assim é Queimados. Uma das, ou, a primeira cidade a nos saudar após a descida da serra. Continuei guiando... Daí, passei pelo atraente bairro de nome no mínimo curioso chamado Rodilândia, onde fica o badaladíssimo Shopping Center Stop Shop. Onde um outdoor na beira da estrada exibe a foto de uma beldade local de nome Artamina. Me pus a pensar que, se o carro enguiçasse naquele lugar, o largaria por ali e sairia correndo pelas ruas sem destino e sem camiseta. Talvez gritasse, talvez fosse direto à igreja do reino de Deus. Deixaria o cachorro trancado no carro, abandonado a própria sorte; que fritasse lá dentro enquanto eu fritaria em busca de um novo amor de nome Artamina.

Nada disso aconteceu, o carro é confiável, eu é que não presto. Segui os carros, o fluxo, as placas que decodificavam símbolos, esclareciam os enigmas, a direção. 'Siga em frente, estrada é esperança', era o que de fato as placas diziam.

O Rio continua lindo, e lá na linha vermelha existe uma faixa apelidada carinhosamente de 'Faixa de Gaza'”.