Linha da resistência

Ela enredava memórias com as linhas da vida. O fio da sua existência saía da pequena sala, coabitada por sua máquina de costura e cinco ou seis belos gatos, retrocedia tempos e se encontrava nas dúvidas de uma menina de cinco anos. A criança nada sabia de si, de seu começo. Apenas tinha certeza daquilo que lhe diziam os adultos: fora abandonada naquela casa por sabe lá quem. Trabalhava e trabalhava - era só o que lhe permitiam em sua não-infância. Na escola, dirigida por freiras, era presenteada, tal como seus colegas, por imagens de santos e anjos de sacra perfeição. Era o prêmio pelas respostas corretas, pelas lições feitas. As figuras dos seres divinos contrastavam com a feiura da realidade de crianças pobres e maltratadas. A raiva, acumulada em sua alma rebelde de pouca idade, deu as ordens às mãos que rasgaram aqueles papéis mentirosos. A vontade era de rasgar o mundo. Foi castigada. E o castigo lhe alimentou a revolta de filha de ninguém. Começava a se desertar de qualquer filiação celestial - a que lhe restava, pois sempre se soube órfã na terra. Aos 15, fora apresentada a seu pretendente e futuro marido - um homem muito mais velho. Vomitou. Engoliu o próprio enjoo e se casou. Teve filhos e se esforçou para edificar o que nunca conheceu: família. Com afinco, diante de um vislumbre de dias felizes, até mesmo se tranvestiu submissa, lutando contra sua tempestiva natureza. Foi ensinada que deveria orar em silêncio nas costas do marido bêbado e violento para que um milagre o transformasse. Assim fez. Aguentou até ser vencida por si mesma; e com hábil manuseio da tesoura sem grilhões, cortou aquela violenta relação. Separada do marido, teceu os dias como mãe e pai, dando aos filhos o que jamais recebeu. Ainda conservava uma linha tênue com o sagrado. Fio fino, mas rijo, forte o bastante para se manter às adversidades tecidas em seu cotidiano. Mas mortes prematuras têm o poder de arrebentar qualquer fortaleza. Não suportou a morte do jovem filho em um acidente de carro. Foi o rastilho que restava para explodir sua ligação com a paternidade divina. A mesma raiva que picotou as imagens de santos e anjos perfeitos lhe assegurou, convicta, que não era - nunca foi - filha de nada. Blasfemou o pai, que jamais fora seu. Somente admirava o idealismo de seu filho homem-divino, que fora por ele obrigado ao sacrifício da cruz. A blasfêmia era o corte nas linhas emaranhadas de sua vida - era sua saída diante de portas fechadas. O fio foi costurando o caminho de volta e se encontrou com uma costureira que aprendeu a alinhavar a si mesma e a dispensar moldes alheios. Os zigue-zagues desgrenhados da vida não lhe desfiguraram a humanidade e o talento para consertar roupas, gatos da rua e o ex-marido. À beira da morte e na miséria, ele a buscou no desespero da ajuda derradeira. Ela não reatou a relação, de modo algum, mas cuidou do homem doente. Nas confusões de suas lembranças e de seus pensamentos, o homem morreu acreditando que tinha sua esposa de volta. Por fim, ela se desculpou da longa história, de algumas ideias, e deu o último ponto na peça que arrumava. Trouxe a linha da resistência de volta para a pequena sala, coabitada por sua máquina de costura e cinco ou seis belos gatos.

Osvaldo Júnior
Enviado por Osvaldo Júnior em 05/01/2023
Reeditado em 05/01/2023
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