Recorte de dois minutos

Quanto mais vou me embaçando, mais tudo vai ficando específico ao meu redor. Me tirei dessa cadeira de bar e me coloquei flutuando no muro da frente de onde vejo você sozinha rondando o copo de cerveja com os dedos, agora que já bebeu o suficiente e não está pronta para o próximo gole. Você é apenas fascinação pela mesa na sua frente. Estuda atentamente a linha da quadragésima ranhura contando da esquerda pra direita como quem observa a parte de baixo de um crânio. Cataloga as curvas. Acha semelhanças radiais. Está muitissimo focada. Que foi que deu em você? Do outro lado da mesa estou parado sem conseguir pronunciar. Sem gestos. Sem exprimir. Tenho horror ao tempo, a realidade, a felicidade e a tristeza. Tenho uma dimensão de desastre natural. Penso na falta de nescessidades do meu absurdo. Quero pensar em você. É apenas esse pequeno momento, na verdade, que não estou pensando em você nessa noite. Que não estou atento aos seus gestos, que não estou perseguindo sem intenção algum traço seu. Mais cedo percebi que você estrutura as falas com um gestual metálico protendido, que não se vê sem algum tipo de atenção. Arrasta a mão na mesa para enfatizar. Retira quando tem dúvida. Junta as pernas quando está nervosa. Bate o pé uma vez no chão quando está decidida. Você parece se atentar a tudo, menos a isso. Continua segurando esse rosto de quem tem muita coisa omitida - e com certeza tem mesmo - enquanto eu me sento e dou por descoberto quase todo o mistério. Mas é porque sou arrogante. E sei que sou arrogante. Por isso preciso dar uma volta. Flutuo em cima do muro, olho pros outros lados. Não deixo subir a cabeça. Deixo o álcool vir.

Nia Ferreira
Enviado por Nia Ferreira em 06/01/2023
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