Um pouco sobre Pelé

A internet é uma maravilha. Fez nascer a figura do cronista independente, que se autodeclara cronista e segue em frente. E quantos deles eu tenho lido por aqui! E até me passo por um deles. Há os que vêm regularmente; há os que, como eu, perdem muitas croniquinhas quer pela autocensura, quer pelo tempo que falta, quer por preferirem dar ouvidos aos mais abalizados. A internet – essa maravilha, um campo democrático, que só requer do autor a consciência de que a liberdade tem lá os seus parâmetros, os seus limites. Mas vamos ao assunto de hoje.

Já faz tempo, como verá o leitor. Eu estava no científico. Chamava-se assim o ensino médio daquela época. Tínhamos um livro de interpretação. Havia textos complicados, que requeriam de nós conhecimento de língua, conhecimento de mundo, conhecimento enciclopédico. Dava-nos uma trabalheira danada acertar aquelas respostas, que o João Batista – nosso excelente professor – protegia da gente no seu encarte exclusivo de soluções, que só os mestres tinham. E aqueles textos costumavam cair em prova. Ah... Certamente que alguém pensou em furtar aquele livreto!

O primeiro texto – lembro-me de que os testes não eram difíceis – falava de Pelé. E o título ostentava apenas as quatro letras com que o mundo aprendeu a identificar o Edson. Era uma crônica muito bonita de Armando Nogueira. Começava assim: “Sua vocação de jogador de futebol é incomparável e se exprime no campo com a mesma espontaneidade da bola que rola; é tão perfeito no criar como no fazer o gol, no drible, no passe, no chute, na cabeçada”. E Armando vai descrevendo com maestria o talento do rei. Mais adiante, ele diz: “... hoje ele multiplica sua presença conseguindo ser, com igual eficiência, construtor e finalizador; num momento, Pelé é o arco que aciona e em seguida vai ser a flecha que alveja”. O livro fazia uma pergunta sobre essa passagem, e eu pude aprender o que é ubiquidade. Uma delícia a crônica do Armando!

À época, eu já tinha visto o Pelé pelos jogos que nós, aqui em Juiz de Fora, assistíamos quando o Santos jogava no Maracanã. Se não passava na tevê, tínhamos a narração na voz do Waldir Amaral. Me lembro muito da epopeia do gol mil. Eu acompanhava pela imprensa e percebia que o rei estava impaciente, o que confirmei agora vendo um documentário. Pelé confessa que as pernas tremiam quando teve, num pênalti, de enfrentar Andrade, o goleiro vascaíno que, embora se eternizasse, socou o chão várias vezes, inconsciente da glória de perder.

Depois disso, Pelé protagonizou muitas passagens... Teve o tri, em que foi muito bem coadjuvado. Teve a ida pros Estados Unidos. Teve o problema com a filha Regina. Uma tristeza! Viveu o envolvimento do filho Edinho com o tráfico de drogas. Outra tristeza!

Creio que, principalmente após deixar o futebol, Pelé contribuiu para a consolidação do mito em que se tornou, investindo em seu próprio marketing. Acho (terei lido?) que o ensinaram a se valorizar mais. E talvez ele tenha até se excedido ao ficar se tratando na terceira pessoa. Para mim, eu é sempre eu, mesmo que dividido, pois somos tantos – já tinha observado o grande Fernando Pessoa.

Sim, em Pelé , há vários, como em todos nós, que vamos vivendo, aprendendo e mudando... Vejam o Pelé mais humilde em imagens antigas, a que agora muitos recorrem, visto que o rei está vivo no imaginário de todos e querem saber mais sobre a vida desse brasileiro. Pelé chega a dizer que se desencantara com copas e não ia jogar a de 70, pois se machucara em 62 e em 66. O rei chegou a dizer que não tinha sorte em Copa do Mundo. Estava desencantado! Relevou e foi. Em depoimento, Pelé disse que estava indo para dar uma resposta a si mesmo e que não estava respondendo a um pedido dos brasileiros. No citado documentário – é da Netflix –, Juca Kfouri diz que Pelé recebeu recados da ditadura de que “era bom ele jogar a Copa”. Paulo Cesar Caju não esconde a admiração pelo rei, mas acha que ele tinha o comportamento do negro submisso, que a tudo aceita e não julga. Seria um exagero? Pelé, talvez, tenha falado pouco da causa dos negros na sociedade. Mas a sua presença, o seu corpo negro, o seu sorriso carismático de deus negro, foi certamente um estímulo a que tantos jovens negros vencessem na vida com o futebol.

Com Maradona, ele teve algumas polêmicas, mas não se negou a visitar o craque argentino em um programa na tevê portenha, que sela a amizade dos dois e exibe a cena deles trocando um série de passes de cabeça. Uma beleza!

Lembram-se do livro com a crônica? Seus autores são Jésus, Ricardo e Roberto. Um colega furtou o gabarito, passou pra classe e deixou o João muito intrigado e muito chateado, mas não fez escândalo... Anos depois, repassando o que aprendi, usei o mesmo livro e li várias vezes o texto do Armando. Recomendava a crônica aos alunos e deixava o livrinho de gabaritos disponível. – Quem quiser ver as respostas, veja, confira, aprenda – eu dizia. E ninguém, na vida, nunca me roubou gabarito, nunca me roubou provas... Quer a honestidade de alguém? Deposite nele confiança, muita confiança... Acredito que seja educativo, ou, pelo menos, gere algum arrependimento no prevaricador.

Há muito eu queria resgatar alguns amigos, alguns episódios daqueles tempos de científico; espaço é o que não falta. Certamente que omitiria quem surrupiou o gabarito, que, no caso do texto sobre o rei, nem era tão necessário porque as perguntas eram leves, mas o texto, como disse, é um belíssimo registro, entre muitos que ainda virão para relatar o que fez Edson Arantes do Nascimento. Mentes criativas não faltarão.