SIGILO DE CEM ANOS

Todos nós, muito sem querer, já tiramos um dia do calendário da vida para conhecer uma figura pitoresca que, graças às suas esquisitices, é alcunhada por nome aviltante o mais possível. Lá no Ceará, numa banda litorânea onde sopra o Aracati, a cambada de longe está acostumada a botar apelido uns nos outros.

Atribui-se o protagonismo do hábito a Castorina Pinto, a mais célebre "botadeira de apelidos" que a história já registrou, nascida em fins do século dezenove em Aracati. Deu-se à luz do sol alencarino com a única missão de, movida por impulsos, apelidar, sem distinção tanto os de casa quanto os de fora. O mal chegado à terrinha tão logo se hospedasse no Hotel do Pinto, localizado ali na Rua Grande, pertencente a Teófilo Pinto, irmão de Castorina, era rebatizado com epítetos, uns às vezes suportáveis e levemente jocosos, outros de extremado mau gosto, capazes de destroçar a honra e a dignidade das pessoas,

Castorina não perdoava ninguém e sua moda de maldizer pegou tanto que o município passou a ser reconhecido por "Terra dos apelidos" onde nem as figuras de relevo da Igreja, do governo e do judiciário escapavam. D. Antônio de Almeida Lustosa, bispo de Fortaleza, era alcunhado de "Envelope aéreo", Dom Hélder Câmara, "Pombinha do céu", o interventor Menezes Pimentel, “Carretel de linha preta", o coronel Querubim Chagas, "Noite ilustrada" e o filho do coronel, "Suplemento de noite ilustrada". O célebre Quintino Cunha, rábula, advogado e um dos pilares do humor cearense, nomeado juiz dessa comarca famosa pelo dom dos comarqueanos de distribuir apodos, apostou que ali não seria apelidado. Ocorre que decorrente da idade trazia mirrada e engelhada uma das mãos, razão de não demorar muito para a choldra, a ralé, passar a chamá-lo "Mão de gengibre".

Foi Castorina quem jogou a nódoa de caju no Zé Quintino? Sabe-se lá, mas a pessoa podia tentar se furtar o quanto pudesse para não topar com ela, esgueirando-se pelas ruas, não conversando nas calçadas, entrando no hotel às escondidas e ali manter-se no quarto e de janelas fechadas, mas nada adiantava. Se Castorina soubesse que alguém ali se hospedara e saíra sem um apelido seu, alertava de pronto que, às vezes, um raio cai duas vezes em um mesmo lugar e quem bebe da água do Aracati sempre voltava, assim, havendo volta e ela viva, saberia muito bem recepcionar o "Rato de gaveta" fujão.

Pois bem. Veio da terra dos bons ventos a figura cheia de estripulias que conheci em Fortaleza como "Cem anos". Não se sabe se o apelido pegou pelo costume de ele iniciar suas histórias se reportando invariavelmente à locução “Há cem anos atrás...” ou, lhe ia às maravilhas o apelido pelo modo como andava. Destituído de massa nadegal, o elemento se lançava para frente, aleijando o andar, o que induzia à referência pejorativa "Sem ânus".

O tipo era um desses cagados e cuspidos de Aracati, mas não ponho a mão no fogo para afiançar que seu apelido se soltara do cacarejar de seriema da atrevida Castorina que chegou a apelidar um juiz de direito de "Cabeça de comarca", por ter a cabeça de Castelo Branco, grande e desproporcional ao corpo e um bancário, que alcunhara de "Cédula falsa", por não arranjar nunca casamento.

No exatinho momento em que soube que, sob os estímulos de Castorina, a negrada o chamava pelas costas de "Sem ânus", correu o alcunhado ao hotel para tirar satisfação com a apelidadora e entre os desaforos proferidos acusou-a de parecer, pela voz gasguitada, com uma "Seriema-fora-do-bando".

Foi o que bastou para o feitiço virar contra a feiticeira que, até morrer, enlouquecia a ser chamada de "Seriema-fora-do-bando".

A figura de "Cem anos" que aqui para não melindrar os olhos pudicos de quem pousar as boticas nestas mal traçadas linhas se escreve sem o "s" e o "a" com chapeuzinho vem dos meus tempos de menino e sua aparência destrambelhada estava coberta tanto pelos sete palmos de terra quanto pelo esquecimento, até se rematerializar na memória estimulada por matéria de jornal na qual o articulista se dizia estupefato com a obra de certo governante da terra plana que a tudo decretava sigilo de cem anos. Sigilo de cem anos foi o estopim da lembrança...

Tomou ou não tomou vacina? Cem anos.

Filho chegou fora de hora e com quem? Cem anos.

Quem foi recebido em palácio pela primeira-dama? Cem anos…

Segundo a matéria, no caso específico da "pedê" ou primeira-dama, o sigilo de cem anos recaía sobre a identidade das pessoas que frequentavam o palácio para se reunir em fervorosos cultos religiosos patrocinados pela serva de Deus forte e tão dedicada à causa cristã.

E foi aí que encasquetei com o costume singular desta figura singularíssima até na terra plana...

Vem cá, sou casado há quase metade de cem anos e nunca tive motivos para decretar sigilo de meros cem segundos sobre o que minha esposa faz ou deixa de fazer “na rua, na chuva, na fazenda, ou numa casinha de sapê.” Se viva fosse, e encontrasse Tim Maia, intérprete da canção de Hyldon, no arruado de Aracati, será que Castorina Pinto o apelidaria de "Bolo enfeitado" como fizera com o bispo D. Manuel da Silva Gomes, primeiro arcebispo metropolitano de Fortaleza? Atrevida como era, talvez o fizesse, mas, referendado a autoria, voltemos a "Cem anos", a figura desengonçada que, certamente, diria que “Hoje em dia, no modo de cem anos atrás, só esconde quem tem o que esconder…”

Hum... Teria ele razão.? E o que será que há para se esconder em um culto religioso, dei-me a imaginar...

O cérebro é fogo, né? Como é curioso... As sinapses quase entram em curto circuito tentando desvendar um misteriozinho qualquer …

Matutei, matutei no meu jeito ordinário de matutar até chegar à vulgar matutice: e afinal o que tem de mais em um marido segredar por cem anos os rastros daqueles que deitaram os joelhos onde os da primeira-dama também marcaram o chão, hein, "Cem anos"? Tem cada uma…

Era só o que faltava, os comunistas sem fé quererem levantar o sigilo por mera suspeita, sem fundamentação alguma, a não ser "apenasmente" , diga-se à Paraguaçu, o gosto pela arenga, levantar falso ou botar apelido...

Tem o que fazer não, "Nove dedos"?

"Nove dedos"... Não, esse apelido não foi atribuído por Castorina Pinto, a seriema de Aracati, mas por certo juiz que grasna feito "Marreco", lá pelas bandas do Paraná...

Se eu voltasse no tempo e me hospedasse como estou hoje no Hotel do Pinto, certamente Castorina me atribuiria o apodo de "Matusalém-beirando-a-cova", por conta da idade. Assim, não tendo por viver dos cem anos nada além dos dois zeros, jamais saberei que diabo leva uma pessoa a botar no culto da esposa sigilo de cem anos....