A minha Pasárgada

Para Manuel Bandeira, “Vou-me embora pra Pasárgada” foi o poema de mais longa gestação. Aos 16 anos, ele deparou com o exótico nome de uma cidadezinha persa, lendo o grego Xenofonte. Vinte anos depois, tuberculoso e só, num momento de profundo desânimo – perdeu em um ano mãe, pai e irmã -, a palavra saltou-lhe do inconsciente, suscitando uma paisagem idílica, um país de delícias.

Desde menina, tive atração pelo modernismo, em especial pela Pasárgada de Bandeira. Quando ocorria algo ruim, recitar mentalmente o poema me alentava. Pasárgada adotou dimensões continentais no meu imaginário. Há uns quatro anos, fui-me embora pra lá nos fins de semana. Meu paraíso terrestre é uma casa de campo, no pé da montanha, a menos de uma hora de casa. É uma casa de madeira, de janelas brancas, em dois níveis, rodeada por sacadas, jasmins, primaveras, saguis e passarinhos. Lá, em contato estreito com a natureza e com minha família, sou feliz.

Há um ano, mascarados armados invadiram minha Pasárgada, fazendo-nos reféns por mais de quatro horas. Ficamos, doze pessoas, presos na sauna, enquanto a casa era virada de ponta cabeça. Não sofremos constrangimento físico : ao nos prender no cativeiro final, antes da fuga, os ladrões deixaram edredons – a região é muito fria e chovia muito -, cigarros e refrigerantes. Fugiram no meu carro, abandonando-o logo depois, próximo de nossa casa na cidade, conforme haviam prometido.

Situações inesperadas de tensão revelam muito sobre nós mesmos. Herdei de meu pai a capacidade de manter tranqüilidade em momentos difíceis - desabo emocionalmente, em efeito retardado, dias depois, quando todos já se recompuseram. Desta vez não foi diferente. Quando entraram, assistiámos a TV ou jogávamos cartas no andar de baixo -, exceto minha filha mais velha, adolescente que dormia no andar de cima. Negociamos : cooperaríamos todos, desde que eles preservassem a nossa integridade física - a grande preocupação eram as crianças e adolescentes. Descobri ali que uma de minhas filhas também herdou a lucidez do avô : ela manteve a cachorra boxer e as três crianças da casa calmas, enquanto eu me encarregava dos adultos e dos próprios assaltantes. Meu marido, de natureza pacífica e contemporizadora, e meu cunhado, recém safenado na ocasião, sofreram trauma pós estresse – a impotência de nada poderem ter feito para proteger as famílias foi aplacada com pílulas e papos-cabeça com o psicólogo.

Tantas horas de convívio forçado produziram lances divertidos. Muito vaidosa, minha cunhada arriscou a vida para preservar seus cremes de beleza, importados. Minha filha, “naqueles dias”, atrevidamente discorreu sobre os efeitos impactantes da TPM para um atônito mascarado. Um dos assaltantes quis se abrir conosco, contando da infância atormentada. Com delicadeza, fi-lo enxergar que, apesar de interessados, ouvir a história só iria nos comprometer – ele acabaria por revelar algum detalhe pessoal que o denunciasse e seria obrigado a dar cabo de seus ouvintes.

Por fim, o saldo foi positivo : os jovens tiveram uma aula prática compulsória de violência urbana – nada como passar o primeiro assalto junto à família – e perceberam a importância de se manterem emocionalmente controlados nessas ocasiões. Os prejuízos materiais foram significativos – por uma estranha conjunção astral, tínhamos muitos objetos de valor em casa naquele dia. Mas nada que nos faça falta hoje... Aparentemente, os bandidos gostaram de nós " vocês são muito legais, não mereciam estar passando por isso, desculpem qualquer coisa" foram as suas palavras de despedida. Sempre é bom fazer novas amizades! E a experiência estreitou os laços de confiança na nossa família.

Mesmo assim, minha Pasárgada ficou quase seis meses subocupada : amigos deixaram de ir com assiduidade e nós fomos rareando as idas, evitando dormir por lá. Só agora conseguimos driblar o medo e reconquistar nosso paraíso terrestre. Vamos todos passar o Natal no pé da montanha, com lareira acesa.

Um dia, quando eu me aposentar, vou-me embora, definitivamente, pra Pasárgada. Posso não ser amiga do rei, mas aprendi que para desfrutar dos meus sonhos tenho que domar os meus medos.

Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 08/12/2007
Reeditado em 08/12/2007
Código do texto: T769492
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