SOL E PEDRO JUAN GUTIÉRREZ.

"Acordei com a sensação que hoje alguma coisa não acabaria bem. Levantei da cama (quase) pisando em meus pés. Abri a janela do quarto, o céu parecia estar nublado. Era um sábado, ou domingo, talvez uma terça.

Fui ligeiro ao banheiro tomar um banho. Abri o registro, fechei o box, deixei a água correr enquanto fui cortar as unhas dos dedos dos pés. Abri o box novamente, a água continuava tão fria quanto o dia. A resistência do chuveiro queimou. Pifou. Banho nem pensar. Não naquele momento. Sentei no vaso sanitário. Me masturbei pensando numa vizinha. Uma morena com cara de felina que reúne toda graça de uma mulher de trinta e poucos anos, mãe de três jovens meninas. Sai satisfeito do banheiro. Assim poderia me concentrar em minha seção de leitura matinal. Quando não tenho um orgasmo pela manhã meu dia é, geralmente, horrível - penso em sexo, no calor dos corpos, nos sons, nos fluidos... Perco a concentração, isso realmente me atrapalha.

Já não tenho muita pressa, mas estão atrasadas algumas respostas que espero em breve - só não tenho tanta paciência como há dez anos. Fui até à cozinha preparar meu café: preto, amargo e sem açúcar. Percebi o quintal claro. Os raios do sol aos poucos atravessaram a janela basculante. O dia parecia propício a um banho de sol. Reuni à minha inquietação o livro de Pedro Juan Gutiérrez, 'Trilogia Suja de Havana', que fora recomendado por um amigo. Me sinto mal por isso, ando lendo por recomendação, e uma das piores coisas na vida é ler por recomendação, dá ao camarada a sensação de desinteresse total por tudo e por todos. Lembrei-me de Silveira, um amigo que enlouqueceu paulatinamente. Foi encontrado uma vez vagando numa floresta. Algumas pessoas disseram que ele andava se drogando. Outras disseram que sua mãe consegui levá-lo à loucura. Elza era o nome da mãe. Não esqueço aquelas coxas roliças e morenas que judiavam da minha curiosa e criativa imaginação juvenil. Passei poucos momentos naquele minúsculo apartamento. Não vejo Silveira há muitos anos. Não sei se está vivo. Não sei mais nada a respeito dele, (...).

Me troquei. Vesti uma bermuda, peguei uma cadeira e fui para o quintal. Coloquei a cadeira num canto estratégico; no chão um litro de café, cigarros, algumas folhas em branco. As nuvens haviam se dispersado quando os pombos alimentados por uma vizinha surgiram como surgem todos os dias. Ratos alados!, pensei. Eles pousaram no telhado da casa (dela) e esperavam que ela jogasse restos de comida, lá. Aquilo me fazia mal. Restos de macarrão, arroz, tudo temperado, quilos, toneladas. Ela chamava as 'feras', que ficavam ouriçadas, agressivas. Eram muitos. Aquele frenesi alimentar tornava-se cada vez mais preocupante - comiam rápido, devoravam uns aos outros. Copulavam enquanto comiam, faziam de tudo. Os pombos passaram a me assediar. Voaram para o meu telhado. Trepavam, cagavam, faziam apostas. Me olhavam com fome, muita fome. Pareciam abutres africanos esperando que eu 'passasse desta para uma melhor'. Nada disso! Nem os pombos, nem a vizinha conseguiriam fazer com que eu desistisse do meu encontro no quintal com o livro de Pedro Juan. Peguei um balde com água, arremessei neles. Acabei com a festa e com aqueles olhares famintos. Eles voaram de volta para o telhado da vizinha. Me deixaram em paz assim que receberam outro punhado de comida. Comiam sem tirar os olhos de mim, me amaldiçoavam, cagavam em cima da comida e comiam toda aquela pasta temperada com a própria merda. Limparam o telhado e voaram para longe. Provavelmente para algum outro telhado. Voltariam no dia seguinte, no mesmo horário, sem atraso. São fiéis. Sentei na cadeira, me servi uma xícara de café.

O calor abafado me fazia bem. Adoro sentir que estou 'torrando' ao sol. A cada página do livro fui sendo tomado pela incômoda presença da desesperança. Não sei se estou com medo do futuro, ou, se estou com medo de lutar por esse futuro, que me parece tão óbvio e tão distante de ser alcançado. Também gostaria de saber por que é que nesses momentos de incerteza penso tanto na minha família?

O telefone tocou. Levantei com a esperança de uma boa notícia. Nada. Era minha ex-esposa. Queria me cobrar a conta da TV a cabo. Estou sem dinheiro em minha conta corrente e ainda me dou o luxo de ter uma TV a cabo e uma ex-esposa, que deve estar com a conta bancária no azul, mas insiste que acredite que a vida está difícil para todos, principalmente, para ela.

A situação exige cautela. Será que o melhor é sair vendendo todas as coisas da casa e ficar só com um colchão, algumas fotografias das viagens que não farei novamente, uma garrafa d’água...? Nada disso! Tenho medo de que como o vício pelo jogo, esse possa se tornar o vício pela desgraça, e como disse um 'médico' que me atendia quando jovem: 'O que você quer é morrer e ver todo mundo chorando na sua cova'. Essa com certeza foi a melhor frase que alguém poderia ter dito a um garoto de doze anos, filho de pais separados, envolvido em pequenos furtos a supermercados, pichação, tabagismo, vandalismo, maconha, sem mencionar o consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Outro dia encontrei o mesmo 'médico' subindo uma ladeira no bairro do Jardim Botânico, Rio de Janeiro. Mal conseguia se equilibrar nas próprias pernas. Sabe quando a pessoa ri de si mesma? Ele parecia aéreo, confuso. Pensei se ele repetiria aquela emblemática frase. Esperei que ele a repetisse. Torci para que ele a repetisse. Apostei comigo que ele a repetiria. Rancoroso? Que nada. Mas jamais esquecerei o que a empregada que trabalhava num apartamento vizinho ao meu disse certa vez: 'Você sabe que aqui no prédio ninguém gosta de você?'. E eu até que me sentia menos influenciado por alguns coleguinhas inofensivos que andavam armados e que me ensinaram a furtar queijo nos supermercados, a ameaçar garotos mimados e a dar 'janelão' (este era o nome escolhido para o famoso 'calote' que aplicávamos nos ônibus que circulavam pela cidade na década de 80. Nós não pagávamos a passagem, simplesmente pulávamos pela janela de trás do veículo). Eu e o 'médico' tentamos conversar um pouco. Impossível. Eu com pressa e ele aparentemente embriagado, ou não, como diz Caetano Veloso. Nos despedimos. Um abraço forte e a esperança de poder reencontrá-lo numa outra circunstância.

Meus cigarros estão acabando no maço e comigo. Sinto uma pequena dor no peito. Um aperto. Algumas dores no estômago, talvez seja os rins ou fígado, ou talvez seja tudo ao mesmo tempo. Levantei do meu banho de sol e fui até a banca de jornal comprar meu prazer amarelo. Prazer amarelo? Sim. Dentes amarelos, dedos amarelados, pulmão... Costumo me perguntar se o que é bom pra mim é necessariamente saudável para outros. Seja flexível, procure o equilíbrio, essa postura de oito ou oitenta ainda vai te matar – são vozes que escuto, nada tem haver comigo.

Caminhei pelas ruas um pouco aéreo. Estava de camisa desabotoada e bermuda. Cheguei na banca de jornal. O jornaleiro (ex-fumante) sempre prestativo e acostumado com o propósito de minhas visitas, ao me ver colocava sobre o balcão o maço de cigarros. Sua esposa (antipática, porém fumante), me olhava com certo embaraço, tudo porque eu estava com a camisa bastante aberta. Fico indignado com os que não aceitam a espontaneidade nas pessoas. Prefiro uma desorganização relativamente organizada. Um denguinho. Acabei de pagar o maço de cigarros. Me despedi da jornaleira e disse: 'Amanhã também vai fazer calor'. Ela não respondeu. Abaixou-se por detrás do balcão em silêncio. Antes de atravessar a rua vi uma beldade vindo em minha direção. Uma loira deslumbrante de pele alva e olhos verdes, com olhar de moça séria. Ela carregava uma pasta daquelas que os Designers e os Arquitetos usam. O detalhe não era a pasta, e sim a calcinha pequenina que delineava os contornos apetitosos daquela bundinha empinada e ligeira. Naquele instante algumas das frases do livro do Pedro Juan começaram a ecoar em minha cabeça. Um fio de baba imaginário escorreu pelo canto da boca. Fiquei com vontade de ir até a 'presa' e convidá-la para beber algo que fizesse com que ela perdesse os sentidos e me contasse o que carregava dentro daquela pasta . Nada fiz, não estou em Cuba e tão pouco me chamo Pedro Juan. Me senti desprotegido, assustado. Abotoei a camisa e atravessei a rua sem olhar para os lados.

Fui ao supermercado comprar fígado de galinha para os meus cães. Subi rápido a rampa de acesso ao lugar. Antes de entrar contei por duas vezes as moedas. É curioso como contar moedas me faz sentir malicioso. Como se estivesse escondendo um grande segredo. Tinha o suficiente para comprar uma bandeja de fígado. Entrei no mercado e fui direto à seção de carnes. Peguei a bandeja com miúdos galináceos e caminhei até a fila do caixa. Uma senhora que estava na minha frente começou a se incomodar com a minha presença. Um olhar de reprovação, talvez nojo. Ela pagou as compras, resmungou algo e partiu como partem as velhas feras: recalcadas e para sempre. Acho que não passei desodorante, pensei enquanto meus olhos se despediam daquela dócil e frágil senhora intrigueira e fofoqueira do bairro. Entreguei as moedas para a senhorita que trabalhava na registradora. Ela sorriu e disse:'Quantas moedas!'. Respondi: 'São os seus olhos'. Fiquei com tanto tesão na loira de minutos antes que até arrisquei uma olhada para o par de seios de uma das ensacadoras do mercado. Febril. Sou como um amigo, me adapto as necessidades".