Crônica Carioca - Rebouças

Mais uma manhã cruzando a cidade. Fiat Uno, rosto inchado no volante às 7:30 da manhã e um calor dos diabos. O Rio de Janeiro não consegue ser unânime sequer nas irrelevâncias. Cheguei à Praça da Bandeira e fico surpreso com a entrada do Túnel: - meu carro era solitário. Mas era a miragem da curva que sobe ao túnel. No elevado era possível sentir o Sol nascendo do centro (na janela do motorista), vindo quem sabe da Igreja da Candelária. Lá na frente havia um Cristo de lado para mim. Possivelmente olhando sua enseada poética com o Pão de Açúcar.

Ligo o rádio e ouço um anúncio de floral para impotência sexual. Mudo a estação. Noticias de Brasília. Um certo parlamentar denunciou uma fraude de tantos milhões. Desligo o rádio. Desligo o ar condicionado com a sensação de abrir a janela para me livrar do trânsito. Sinto o bafo do asfalto e fecho tudo de novo.

Ligo o ar.

No carro ao lado, sentada no banco de trás uma menininha parece perceber minha aflição. Cospe o chiclete. Estica no dedo e mastiga de novo. Faz tudo isso rindo e zombando do meu calor de ar condicionado do fiat. Eu a divirto com uma careta.

O Trânsito anda.

Consigo cruzar o túnel. A vida parece fluir em câmera lenta na Lagoa Rodrigo de Freitas. Nas bicicletas desfilam beldades; correm atletas e madames empapadas de protetor solar junto a de seus poddles. O vovô compra pipoca com o cigarro no bico. Não sabe se fuma ou se come pipoca.

Penso que chego logo em Ipanema. Já são 8:18. Placa para N. S. da Paz. Preciso estacionar. Estacionar em Ipanema é uma jornada à parte. Jaguaribe, Nascimento Silva, Redentor...não há vagas. Embora haja todas as vagas ocupadas, há poucas pessoas na rua. Aliás, abro um parêntese: - A Ipanema matinal é dos porteiros. Mas depois trato disto numa outra crônica.

Estaciono finalmente o Fiat na Barão de Jaguaribe (fica a dica). Procuro carteira, chave, celular. Recolho meu material. Não. Não esqueci nada. Saio do carro e passo a chave na porta distraído. Eis que surge à minha frente um vulto. Era um homem branco. Meio calvo, com olhar longe. Estava de mãos dadas com uma menina mascando chiclete.

Foi muito rápido. Ela olhou fundo nos meus olhos, tirou o chiclete da boca e, mostrando a língua, fez-me a careta mais sincera dos meus 38 anos. Depois partiu.

Fiquei lá ainda. Só. Abandonado na lembrança daquela careta.

Seu gesto revelou ainda uma singela falta de dentes.

Dentes de leite.

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Eduardo Cassilhas

Instagram: @edu.cassilhas