CAPITU

Crônica: Capitu

Amélia Luz

Falo, Bentinho, que desde tão novos a chama do amor acendeu os nossos corações e desde aquele dia que escrevemos no muro os nossos nomes começando um namoro inocente, nunca mais olhei para outro homem que não fosse você. Sempre cortejada pelos rapazes da época zelei pela sinceridade do meu coração e relembro o primeiro beijo, às escondidas, quando você penteava os meus cabelos.

Desistindo da vida religiosa você oportunizou a nossa aproximação culminando no casamento. Para mim, o dizer o SIM foi um pacto de amor para sempre. Passei por várias situações constrangedoras em relação ao Escobar, nosso amigo e compadre e você não se cansava de me acusar, irônico e cruel, na insegurança de um marido imaturo que me tirava a liberdade de viver honestamente como esposa e mais tarde mãe do nosso único filho que você, injustamente, fez questão de me acusar como traidora insinuando a paternidade de Ezequiel a Escobar.

Saiba do meu sofrimento diante da sociedade ou diante dos seus familiares. Tentei em vão salvar a nossa relação, mas você insistia em destruir com a negra desconfiança o grande amor que eu sentia por você. Dona Glória percebia e trocava as suas confidências com o José Dias que se punha como vigia dos meus passos. Como mulher amadurecida pelo sofrimento venho dizer-lhe que você matou a nossa união pelo ciúme doentio. Seus olhos de fogo afugentaram a pureza que havia em mim tornando-me por isso fria e incapaz de corresponder aos seus carinhos íntimos. A mágoa me deixava marmórea impedindo a minha capacidade de ser plena como esposa. Percebia a maneira dura que olhava para o nosso filho, o que me machucava profundamente, tão inocente ele era para que fosse impedido de ter a amizade sincera do pai por uma suspeita doentia. Escobar para mim era como um irmão e com a sua distância como marido ele tornou-se mais próximo por compreender com mais sensibilidade as queixas de uma mulher atingida pelo ciúme. Sem liberdade, vivia acorrentada, unida a um meninão mimado. Toda mulher anseia por um companheiro firme, capaz de lhe dar segurança como homem.

Por que razões essa desconfiança? Teria eu lhe dado motivos para tamanhas acusações? Seus acessos de fúria assustavam-me e me deixavam abalada. José Dias ainda com seus olhos acusadores lhe dizia que eu tinha “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Na verdade, eu não sabia a verdadeira intenção dele. Agora entendo que era maldoso ao afirmar que eu tinha “olhos de ressaca”. Seria desejo dele nos separar? Ou sentia ciúmes de mim por integrar uma família sendo ele um simples agregado?

Logo se interessou em mandar-nos, eu e nosso filho para a Suíça, pensando em livrar-se dos seus delírios de ciúmes mesmo sabendo que Escobar estava morto e enterrado. Segui viagem como você ordenou. Não relutei ao concordar com a sua determinação egoísta ao querer que Ezequiel estudasse fora e crescesse longe dos seus olhos de pai ausente e da sociedade da qual você não desejava expor Ezequiel achando que todos o chamariam de marido traído.

Você foi muito cruel e tirou-nos o direito de sermos felizes numa família ajustada. Sim, nosso filho cresceu e hoje é homem feito. Saiba que estou muito doente, o clima da Suíça não me fez bem e percebo que minha vida está por pouco. Esta carta tem como finalidade expor toda a humilhação que passei com você, numa calúnia sem provas de adultério.

Muito bem, Dom Casmurro, sempre camuflado na sombra da sua imponente família e da roda de amigos de alto nível social, é tudo o que tenho a lhe dizer sentindo que poucos dias de vida me restam. Deixo-lhe uma causa jurídica. Que trabalhe nela como advogado competente, sua profissão. Absolvição? Acusação? Condenação? Nenhum cárcere caberá a sua culpa. Ezequiel ficará depois de mim e lhe entregará minhas histórias em mãos, nas crônicas de cada dia. Espero que não transfira para ele essa ira injusta e envenenada acusação. Um dia você será o juiz de si mesmo e a punição do remorso irá corroer a sua alma, tirando-lhe a paz para sempre. Porém ao assistir às missas, rezar e comungar nunca deixe de fazer a sua sincera confissão:

“Dominus, non sum dignus” ... “Que esta terra lhe seja leve”! Sou a Capitolina, ou a sua sempre Capitu.

Estou doente, em Berna, estamos em 15 de setembro de 1899, creio que nunca mais nós nos veremos. Ficarão todas as lembranças felizes.