Hooker

Acontecia todas as noites. Configurando-se como um ritual diário de dispersão sentimental - possível autodestruição. Eu e Micaele, dois boêmios fajutos lamentando perdas que pareciam irreparáveis. "Ele postou uma foto hoje, já está com outra" ela me dizia. Micaele tinha o dom de se envolver com os homens errados. E enquanto ela me contava, Hooker dizia "então procurei, nos bares da aurora me lamentei, e confesso que talvez joguei tuas fotos e discos no mar". Tudo parecia mais poético do que fato era, estávamos bêbados, entre o mundo de cá e lá. Os bancos enfileirados do calçadão agregando tribos diferentes, todos agarrados a garrafas de vinho barato. Cheska vendeu bem naquelas noites. Olhávamos um para o outro, Micaele me fazia rir quando olhava fixamente para um canto parecendo perdida.

Então eu voltava a falar sobre os N motivos pelos quais nós não demos certo. Sala vazia, poucos móveis espalhados pela casa. Luz amarela. Copos de plástico, a segunda garrafa de vinho quase no fim. Nós nos balançamos de um lado pro outro simulando uma dança. Nós nos afastamos e então rimos um para o outro. Era madrugada. "volta, que o caminho dessa dor me atravessa" Hooker canta pela terceira vez. Micaele me olha como eu imagino ter olhado para ela minutos atrás. "Tu tem certeza que não quer mais?", ela me pergunta. "Não, não, não quero. Sério mesmo, eu estou me sentindo péssimo, mas não faz mais sentido. Me fez mal, mais do que me fez bem. Abri mão de tanta coisa.", eu respondo. Ela claramente não entende o "abri mão de tanta coisa", confesso que nem eu, mas guardava a sensação comigo. "que a vida não mais me interessa se você vai viver com um outro rapaz", e então nós cantamos juntos "que eu perdoo teus caminhos, teus vícios, te carregando mais uma vez de volta do bar".

Micaele levanta para usar o banheiro do barzinho na outra calçada e eu fico sozinho, no banco, mergulhando a língua no copo de vinho na mão e a memória ecoando passagens da casa silenciosa, habitada por dois fantasmas que sempre se visitavam durante a madrugada. No dia seguinte, era preciso acordar cedo, limpar o que parecia ter restado um do outro - vestígios de nossos crimes - vamos romantizar um pouco os nossos feitos - por que não? E saíamos nas primeiras poucas horas do dia, tínhamos muito pela frente mas era certo estarmos lá novamente no fim da noite. Precisávamos um do outro. Sensação poluente de pertencimento àquilo que me destrói. Micaele voltava rindo do barzinho, mais uma vez recebendo investidas da dona do estabelecimento. "Saudade de você, viu! Nunca mais apareceu!" ela dizia para Micaele, que respondia "estou aqui todo dia!", sem mentira. Eu voltava à realidade, num lapso de sobriedade e pensava "preciso parar com isso", risos seguidos do pensamento. "Oh vida errada" eu dizia quando Micaele se aproximava. Sinto tua falta, Micaele. "Nunca mais apareceu!", agora é verdade.