O APAGÃO

O APAGÃO

Destituída de qualquer resquício de autonomia, impotente diante das escarpadas circunstâncias impostas, a liberdade vestida com a camisa-de-força da responsabilidade, mera expectadora, sem grafia de sujeito. A intimação da morte simbólica, vinda da própria vida, seguida à risca. Obediência à tirania do real, não sem certos instantes dramáticos de esperneio, cada vez mais raros e privados. Reduzida a ser útil, a voltar-me exclusivamente para o mundo visível, concreto, sempre a reclamar minha atenção. Aceitava tal sorte lançada.

Não por acaso, em sincronicidade, uma noite faltou luz. Sem velas em casa, procurando a lanterna numa gaveta pouco usada, tateio um saco com pedras dentro. Nunca mais jogadas, há décadas, a sede de decifrar a esfinge do futuro esquecida desde a juventude. Deixo a razão de fora e, com prazer, chacoalho entre os dedos das mãos as Runas, na esperança de que a escolhida consiga, senão afastar os fantasmas, ao menos fazer um recorte do momento, dar-lhe sentido. Risco um fósforo e a vejo, sem nenhuma inscrição, ameaça à nitidez desejada. A vigésima quinta runa, a última, a branca, significa "no colo dos deuses" ou "o que será, será". Avisa que não há como controlar o que está em movimento, o desconhecido. Fala de um salto no escuro. Prenuncia eventos inevitáveis dos quais não conseguiremos escapar, embora associados a coragem para enfrentar obstáculos e fé na capacidade de ultrapassá-los. A também chamada Runa Vazia, com seu potencial indeterminado, sugere que podem ser trazidos à superfície tanto nossos medos como os sonhos mais profundos.

Aos tropeços, debaixo de completa escuridão, prossigo a busca. Agora surge um pequeno baú com as cartas do Tarot, que logo embaralho e recolho O Pendurado. Ela remete ao mito de Prometeu, o Titã que desafiou a lei de Zeus roubando o fogo sagrado para entregá-lo ao homem, e assim foi punido. Evoca sacrifício pessoal, abnegação, submissão ao dever. E o crepúsculo do sol na cena exprime o decrescente brilho da luminosidade, do racional, da consciência. Estarei de cabeça para baixo frente ao mundo? Não é uma postura confortável, perde-se o pé, o equilíbrio, fica-se tonto. Um adeus ao velho e direto olhar, no entanto também uma rara oportunidade de enxergar as coisas sob outra perspectiva, observar as situações por um ângulo diferente, acolher novos pensamentos com o cérebro bem irrigado pela posição invertida. É preciso não lutar contra essa condição. Confiar. Em suspensão, literalmente.

Por fim, com as três moedas do I Ching encontradas, rendo-me ao clássico da sabedoria oriental, o oráculo dos números, o Livro das Mutações. O resultado, o hexagrama 5, A Espera, aponta para nuvens trazendo a chuva, para alegria de tudo o que cresce, porém ela só virá em tempo oportuno, não é possível apressá-la. O mesmo ocorre quando o destino articula seus passos. Espera não quer dizer renúncia, adiar não é abrir mão. Ansiedade e impaciência não devem dissipar nossa energia. De nada adianta ceder às preocupações, ao contrário, manter a segurança interior, permanecer sereno, em "estado de abandono", o que caracteriza a atitude de alguém que abdica da vontade, temporariamente, e se entrega à vontade dos céus.

Irretocável retrato do meu teatro das sombras. A luz ainda não voltou, mas já percebo algum brilho nas brumas.

Ana Guimarães

Ana Guimarães
Enviado por Ana Guimarães em 14/02/2023
Reeditado em 14/02/2023
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