Fora, Uber! Fora, Uber! Fora, Uber!

Às nove e quinze da manhã de uma quinta-feira ensolarada do mês de fevereiro, Gustavo retira-se, apressado, da sua casa, e, célere, a passos largos, a trotear em alguns trechos de sua corrida, vai à agência dos correios mais próxima de sua casa, desta distante uns quinhentos metros. A sua pressa justifica-se: tinha de comparecer, às dez e meia, no Fórum Municipal, para um depoimento, que teria de apresentar ao juiz. Pretendia no Fórum chegar uns quinze minutos antes da hora marcada, atendendo às orientações do advogado, que iria prepará-lo a ele Gustavo para encarar o juiz, que, segundo o advogado, era boa-pinta e gente boa, mas, nos dias em que não estava de boa veneta, nos dias em que estava com a macaca, aflorando-se-lhe o lado negro de sua força, tinha rompantes de fúria indomável, e nenhuma disposição para ouvir o que quer que seja de quem quer que fosse. Se não se sabia em quais dias o juiz estava com a macaca, então Gustavo que tratasse de chegar uns quinze minutos antes da audiência com ele, para do advogado ouvir as orientações. Gustavo não questionou as exortações de seu advogado. Chegado à agência dos correios, retira para si uma senha de atendimento, e espera, ansioso, impaciente, alguma funcionária o atender. Esperou durante longos e intermináveis dez minutos, no transcurso dos quais consultou umas trinta vezes o relógio que lhe envolvia o pulso, atraindo para si a atenção das poucas pessoas que, tais quais ele, aguardavam por atendimento. A sua senha, enfim, apareceu, acompanhada de um apito agudo, no monitor disposto à parede. Os ponteiros do relógio anotavam nove horas e quarenta minutos. Com oito largos passos, achegou-se Gustavo à atendente que estava atrás do caixa indicado com o número quatro. E tão logo saudaram-se com um bom dia, Gustavo tratou de para ela dizer:

- Tenho de ir ao Fórum Municipal.

- Qual é o endereço?

E Gustavo disse-lhe o endereço.

- Daqui até lá, senhor, são dois quilômetros e duzentos e trinta e sete metros e quarenta e oito centímetros.

- Vocês são detalhistas rigorosos.

- Os nossos cálculos são perfeitamente exatos.

- Quantos Reais terei de pagar por uma corrida até o Fórum?

- O senhor quer ir pelo trajeto mais curto?

- De preferência.

- E pelo menos movimentado?

- Se possível.

- O senhor tem preferência por algum modelo de carro?

- Desde que funcione, qualquer um me serve.

- Temos carros... São as opções que oferecemos ao senhor: carros movidos à gasolina; carros movidos à gás; carros movidos à etanol; carros movidos à energia elétrica; e carros movidos à gasolina aditivada.

- Serve-me qualquer um que me leve até o Fórum.

- Senhor, o senhor tem de optar por uma das opções.

- Então... então... Podemos apressar o atendimento?!

- Senhor, temos de respeitar o regulamento. Não podemos providenciar para o senhor um veículo de transporte de animais humanos, se o senhor não nos dizer qual dentre as opções de carros que deixamos à disposição do senhor o senhor deseja.

- Animais humanos?! Você está querendo dizer 'pessoas'?!

- Sim.

- Entendi. Para mim, está de bom tamanho um carro movido à gasolina.

- O senhor deseja contratar um serviço de transporte de animais humanos?

- Sim.

- E o senhor opta por um carro movido à gasolina?!

- Sim. É o que eu quero e o que eu desejo e o de que eu preciso, o mais urgentemente possível. É para ontem, moça.

- Senhor, entendemos as suas razões para tamanha pressa, mas temos de respeitar todas as etapas dos procedimentos que exigimos para a contratação do serviço de transporte de animais humanos. O senhor entende as nossas razões, não entende?

- Sim. Eu as entendo.

- Não podemos deixar de informar o senhor que temos um programa de responsabilidade ambiental e de proteção do planeta Terra, programa que consiste no incentivo ao uso, pelos animais humanos que contratam os nossos serviços de transporte de animais humanos, de veículos movidos à energia elétrica. Saiba, senhor, que o mundo empreende esforço desumano para a proteção da natureza, e uma das tarefas que tal esforço contempla é a do abandono, pelos animais humanos, do uso, nos veículos, de combustível de origem fóssil, que, sendo poluente, além de destruir a camada de ozônio, provoca, ao liberar, na atmosfera terrestre, diariamente, bilhões de toneladas de ceódois, o efeito estufa, ocasionando, consequentemente, o aquecimento global de origem antropocêntrica, e as mudanças climáticas, também de origem antropocêntrica, resultados, o aquecimento global e as mudanças climáticas, da atividade humana capitalista, que, alterando o clima terrestre, prejudica a vida da Terra, e a dos seres vivos naturais, e a da fauna e a da flora, e a dos animais e a das plantas, e a dos seres vivos que vivem no fundo do mar, na floresta amazônica, no Saara, e em outros locais inóspitos, que mesmo que nestes os animais humanos não atuem, direta ou indiretamente, com as suas irresponsáveis e inconsequentes atividades predatórias, elas lhes influenciam negativamente o meio ambiente, destruindo-o. Além disso, senhor, prevê-se que o nível das águas dos oceanos irá elevar-se, nos próximos setenta, oitenta anos, até o ano 2.100, uns cinco metros, o que provocará ondas gigantescas devastadoras e tsunamis destruidores. A elevação da temperatura...

- Moça, perdoe-me interrompê-la. Você pode acelerar o atendimento, por gentileza?! Tenho de ir ao Fórum Municipal. Terei de lá estar, sem falta, minutos antes das dez e meia. Nenhum segundo de atraso o juiz irá me permitir. Ele não aceitará de mim desculpas e justificativas. Ou eu chegarei na hora marcada, ou dançarei, e dançarei bonito.

- Entendo, senhor, as suas preocupações; mas eu não posso deixar de seguir os protocolos. O senhor tem de entender que participamos das campanhas Trânsito Consciente e Viva a Terra, dois programas globais que atendem aos interesses de todos os animais humanos, que desejamos viver num planeta sem poluição, e que sonhamos que não tenhamos de enfrentar os problemas provocados pela superpopulação, e que queremos que as mulheres não sejamos vítimas...

- Entendi. Entendi. O que tenho de fazer para contratar o serviço de transporte de pessoas que me leve daqui até o Fórum Municipal?

- O senhor tem de optar por um dos carros que deixamos à disposição dos animais humanos que contratam os nossos serviços de transporte de animais humanos, um carro que não seja movido à combustível de origem fóssil, um carro que não libere na atmosfera terrestre poluentes, que destróem a camada de ozônio, um carro que não provoque o efeito estufa, um carro, enfim, movido à energia limpa, renovável, à energia verde, um carro...

- Quais são as opções?!

- Carro movido à energia elétrica.

- E os carros movidos à gasolina, e os movidos à álcool, e os movidos à gás, e os movidos à etanol?!

- Senhor, atendendo à nossa política de consciência ambiental e proteção dos povos nativos...

- Entendi. Entendi. Não precisa, de enfiada, desfiar, uma vez mais, o rosário.

- Pedimos, senhor, que o senhor não desrespeite uma funcionária pública, que tem a proteger-lhe a integridade legislação que condena à prisão animais humanos masculinos providos de masculinidade tóxica de uma sociedade corrompida pela cultura do estupro e...

- Moça, eu quero ir ao Fórum Municipal...

- O senhor quer contratar os nossos serviços de transporte de animais hu...

- Sim. É o que eu quero.

- As nossas opções...

- Eu quero um carro movido à energia elétrica.

- Ao optar por um carro movido à energia elétrica, o senhor demonstra possuir responsabilidade ambiental e consciência social. O senhor ganhará, ao encerramento da corrida, um certificado de animal humano ambientalmente consciente. O senhor, repetimos, decidiu pela opção correta.

- E eu tinha outra opção?!

- Sim. O senhor poderia optar por um carro movido à gasolina, ou por um carro movido à etanol, ou por um carro movido à gás. Mas todos estes carros descarregam na atmosfera elementos poluentes, que destróem a camada de ozônio...

- Não recomece a ladainha, por gentileza. Tenho de ir...

- De todas as opções, senhor, que o senhor tinha à disposição uma é a correta: a do uso do carro movido à energia elétrica.

- Certo, moça. Entendi o que você me disse; agora que escolhi, de livre e espontânea vontade, o carro movido à energia elétrica, e sem ser coagido a fazê-lo, podemos ir para a próxima etapa?!

- Sim, senhor. Agora que o senhor demonstrou boa vontade e disposição para entender a nossa política de proteção ambiental e de proteção do planeta Terra, executaremos, na sequência, os outros passos para a efetivação da contratação, pelo senhor, dos nossos serviços de transporte de animais humanos, serviço que, reconhecido internacionalmente, conta com o selo de ambientalmente correto e consciente.

- Certo. E agora?!

- O senhor deseja que dirija o carro um animal humano masculino ou uma animal humana feminina?

- Você está querendo me dizer que tenho de optar por uma, ou por um, motorista?

- Sim, senhor.

- Para mim, desde que o motorista saiba dirigir o carro, tanto faz como tanto fez.

- O senhor tem de optar por uma das duas opções.

- Tudo bem. Que o motorista seja um homem.

- Antes de anotarmos a sua decisão de optar por um motorista animal humano masculino, e não por uma animal humana feminina, temos de ao senhor informar que participamos de um esforço global cujo fim último é a erradicação das desigualdades entre os animais humanos masculinos e os animais humanos femininos no mercado de trabalho e as diferenças salariais entre eles. Saiba, senhor, que a nossa sociedade, machista...

- Entendi, moça, entendi. Sou um cidadão consciente. Tenho consciência ambiental e, também, social: que uma qualquer mulher dirija o carro movido à energia elétrica que me irá transportar ao Fórum Municipal.

- O senhor opta pela opção correta, conscientemente consciente das suas responsabilidades cívicas e sociais de respeito às mulheres. Ótimo. Agora, senhor, digo que durante a viagem a sua conduta tem de ser respeitável, impecável, exemplar. O senhor não poderá olhar para a motorista e pensar pensamentos libidinosos.

- Entendi.

- A motorista, senhor, o senhor a prefere branca ou negra?

- Se sabe dirigir carros movido à energia elétrica, para mim tanto faz como tanto fez.

- O senhor desconhece...

- Vamos abreviar o atendimento. Direi para você quem eu quero que seja a motorista que irá dirigir o carro que me levará até o Fórum.

E Gustavo disse à moça que o atendia quais tinham, obrigatoriamente, de ser as características física da mulher que lhe dirigiria o carro, e dela a sexualidade, e a religiosidade, e os hábitos alimentares, e os programas jornalísticos que ela assiste, e os políticos que ela admira, e a ideologia que ela defende, e outras coisinhas mais, coisinhas que, de tão numerosas, não cabem nesta crônica. Ao fim de sua explanação, a funcionária, que o ouvira, admirada, atentamente, disse-lhe:

- O senhor revela-se surpreendentemente consciente das suas responsabilidades de cidadão exemplar, de animal humano masculino isento de preconceitos milenares e de sentimentos racistas e sexistas.

- Você não imagina a minha felicidade ao ouvir de você tais palavras.

- Agrada-me, senhor, saber que há, em nossa sociedade, animais humanos, que são raros, que tenham consciência de seu papel de cidadão socialmente consciente.

- Obrigado pelos elogios.

- O senhor os merece.

- E o carro e a motorista já estão à minha disposição?

- Não, senhor. Para finalizarmos o atendimento: O senhor quer ir pelo Sistema Doze ou pelo Sistema Vinte e Quatro?

- O que é Sistema Doze?! E Sistema Vinte e Quatro?!

- O Sistema Doze e o Sistema Vinte e Quatro contemplam os graus de emergência no atendimento aos animais humanos que nos procuram para contratar os nossos serviços de transporte de animais humanos. No primeiro sistema, admitimos, e assumimos, o compromisso de transportar o animal humano que solicita, e contrata, os nossos serviços, desde o ponto de origem da sua viagem até, dela, o ponto de destino, ambos os pontos estabelecidos em contrato, num prazo de doze horas; e no segundo sistema...

- Entendi, moça. Entendi. Vocês transportarão o cliente, desde que ele seja um animal humano, ao destino, em vinte e quatro horas, e jamais após este período de tempo, após a assinatura do cliente na ordem de serviço.

- Exatamente, senhor.

- Mas eu tenho de chegar ao Fórum Municipal em meia hora, no mais tardar.

- Senhor, ainda é cedo.

- Eu sei. Digo que não posso me atrasar ao meu compromisso, agendado para as dez e meia de hoje, daqui a poucos minutos, menos de meia hora.

- O senhor podia ter-nos de seu compromisso nos avisado com antecedência de doze horas, ou de vinte e quatro horas. Ontem, portanto, nos dois casos. Se assim tivesse feito,providenciaríamos, para hoje, ao senhor, o serviço de transporte de animais humanos.

- O meu advogado falou-me, ontem, à noite, às onze horas, da minha ida, hoje, obrigatoriamente hoje, ao Fórum, às dez e meia desta linda manhã de uma quinta-feira de fevereiro.

- O senhor, neste caso, terá de contratar o serviço de transporte urgente urgentíssimo de animais humanos.

- Quantos Reais terei de desembolsar para contratar de vocês tal serviço?

- Devido à grande procura pelos nossos serviços de transporte de animais humanos, o que está a saturar os nossos serviços de empresa mais eficiente do ramo, no país, cobramos...

- Vocês são a única empresa do ramo, monopolista.

- Conquistamos o direito de exercer monopolisticamente a atividade no ramo de transporte de animais humanos após provarmos ao governo que temos as melhores experiência e eficiência, que excediam às dos nossos outrora concorrentes, que sobrepujamos em concorrência aberta ditada por regras que atendem aos princípios basilares e elementares da justiça social e aos interesses da coletividade.

- Não discutamos a questão, não hoje.

- Entendo, senhor. O senhor pretende contratar os nossos serviços de transporte de animais humanos?

- Sim.

- O de urgência urgentíssima?

- Sim. Não há outra opção.

- As outras opções são o Sistema Doze e o Sistema Vinte e Quatro.

- Não me servem.

- Sabemos. O senhor já nos falou a respeito.

- E quantos milhões de Reais terei de desembolsar para contratar o serviço de transporte urgente urgentíssimo de animais humanos?!

- Senhor, repetimos: devido à saturação dos nossos serviços, ocasionado pela grande procura, demanda que superou as nossas mais otimistas expectativas, e não podendo habilmente fornecer o serviço, ofertando-o com a presteza que é a nossa ideologia empresarial, e em decorrência dos elevados, e justificados, custos oriundos das nossas políticas ambientais e sociais e raciais e de gênero, temos de, para atendê-lo em regime de urgência urgentíssima, esta é a sua demanda, cobrar do senhor, pelo serviço de transporte de animal humano, valores compatíveis com a política de responsabilidade social cujo objetivo é a harmonia entre a prestação eficiente do serviço que o senhor deseja de nós contratar e o bem-estar comum da coletividade. Informamos ao senhor que, considerando o modelo do veículo pelo qual o senhor optou, o veículo que o transportará, do ponto de origem de sua viagem até o ponto de destino, o senhor terá de pagar, pelos nossos eficientes serviços, os melhores do mercado, trezentos e quarenta e dois Reais e trinta e sete centavos.

- Meu Deus!

- Caso o senhor opte por dispensar o seguro de vida, o que não aconselhamos, o preço que do senhor cobraremos será duzentos e oitenta e sete Reais e vinte e nove centavos. Neste caso, o senhor economizará cinquenta e cinco Reais e oito centavos. Uma economia, e tanto.

- Com certeza. Economizarei uma fortuna. Mas, se eu não contratar de vocês o serviço de transporte de animais humanos, economizarei, deixe-me ver, trezentos e quarenta e dois Reais e vinte e nove centavos.

- Trinta e sete centavos, senhor, além dos trezentos e quarenta e dois Reais.

- Sim. Economizarei, neste caso, mais do que se eu contratar de vocês o serviço, que estou a solicitar, o de transporte de animais humanos, sem o seguro de vida.

- Percebo na sua voz, senhor, e nas suas palavras, um tom sarcástico, que é desrespeitoso. Peço ao senhor que mantenha a compostura.

- Moça, eu não estou desrespeitando você. Limitei-me a informar a você que economizarei, se de vocês eu não contratar o serviço de transporte de animais humanos, mais do que se de vocês eu o contratar, mas dispensando o seguro de vida.

- O senhor tem de saber que o preço que do senhor cobramos, além de, não sendo abusivo, é socialmente justo, e os nossos serviços, que, sendo ambientalmente corretos, contemplam o atendimento de protocolos globais igualmente praticados no Canadá e em inúmeros países europeus, os mais desenvolvidos e ricos e cultos deles, ambientalmente e socialmente apropriados para a correta preservação da vida dos animais não-humanos e dos seres vegetais não-animais, o que nos põem em uma posição vantajosa diante da comunidade internacional, concedem ao senhor o direito de optar ou por um envelope ou por uma caixa.

- Envelope?! Caixa?!

- Sim, senhor. Ou um envelope, ou uma caixa.

- E para o que eu precisaria ou de um envelope ou de uma caixa?!

- Para acondicionar o senhor. Iremos, a depender da sua escolha, para transportá-lo com segurança, envelopá-lo ou encaixá-lo.

- Moça, você ê muito atenciosa e educada.

- O senhor está contaminado pela masculinidade tóxica da nossa sociedade machista apodrecida pela cultura do estupro. Elogia-me com a intenção de...

- Foi apenas um elogio...

- Podemos finalizar a solicitação de serviço de transporte de animais humanos?

- Não! Não! Não! E não! Irei, à pé, correndo, até o Fórum. Estou, mesmo, precisando perder as gordurinhas localizadas na barriga.

- Senhor, o senhor sabia que a gordofobia...

- Vá para o diabo que te carregue! Fui!

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 15/02/2023
Código do texto: T7719941
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