ALGUÉM VINDO DE ROSÁRIO.

"Parecia ter diante de mim uma barreira intransponível. Uma viajem ao exterior no momento não me soava como uma decisão sólida e estudada e aceita pelo meu corpo. Pode parecer uma inverdade, mas os anos passam para aqueles que prestam atenção nos pequenos sinais que a morte deixa pela manhã. São como um rastro de sangue transparente, mas perceptível.

Arrumei minha mala depois de aborrecer-me comigo mesmo. Irrito-me quando tenho que fazer o que é comumente aceito entre tantos. Não que sinta dó ou qualquer tipo de ressentimento comigo, mas preservo o gosto pelo que eu poderia ter feito, o que torna difícil a tarefa de aceitar-me fazendo. Fechei a mala, calei minha boca um pouco, e fui parar no aeroporto.

O lugar estava cheio de pessoas felizes e mentirosas como eu. Parei num bar e pedi uma cachaça. Cachaça é barato, pensei. Virei a dose de uma só vez. Havia uma menina de uns quinze anos ao meu lado com umas pernas fortinhas. Virei a 'mardita' e olhei para aquela presença, para aquelas coxas como se tivesse um preço para a minha predição, ou talvez a cadeia me fizesse melhor. Pedi a conta. Fui devagar despachar minha mala. Caminhei sem vontade, contrariado. Despachei a mala e fui para a sala de embarque. Logo que entrei no avião, me ajeitei no assento e tirei do bolso meu 'sossega leão', tarja preta, eficiente. Acordei quase chegando na Inglaterra. Não comi. Não conseguia, a cabeça pesava uma tonelada e meia.

Cheguei em Londres. Desembarquei rápido. Chovia muito, céu nublado, mas enorme saudade dos amigos. Tomei o metrô e fui direto para a casa dos meus tios no bairro de Batter Sea. Pensei em comprar uma lembrança, mas não tinha dinheiro. Tinha, mas não queria comprar nenhuma lembrança (...).

São quatro horas da manhã, estou deitado na cama do quarto de visitas na casa dos meus tios, e como a quarto está um pouco frio, e como eu não os vejo há seis anos, isso me fez pensar por um instante se eles estariam realmente dispostos a me receber. Bom, eles são família, acho que está tudo bem. Conheço pouco a essência da palavra família, por esta razão às vezes fico sem saber no quê e em quem acreditar. Estou ouvindo algumas músicas, sinto frio e fome e tento escrever. Acho que peguei uma gripe. Era o que me faltava. Não consegui ir adiante com o texto. Desliguei o computador, me cobri. A luz amarelada vinda da rua invadia o quarto através das cortinas, refletindo no lençol branco pareciam um trigal, no meu rosto, alguém com malária, dengue, gripe aviária...

Acordei cedo. Me troquei e fui investigar a geladeira. Perdi a fome, mas preparei um chá de blackcurrant e servi com um pouco de leite. Ninguém em casa. Entrei na internet e bati a primeira punheta em Londres. Havia descoberto há uns meses um site russo bem familiar. Tudo feito, tudo pronto, fui para a rua e desci para a estação do metrô.

Andei pela estação mentindo para mim mesmo que iria visitar o cemitério de Hight- Gate. Fiquei uma hora dentro do vagão do metrô a caminho do cemitério. Pude pensar como seria o próximo ano, nos amigos – é sempre bom pensar nos amigos -, mas o pensamento recorrente é sexo. Sim, sexo. Penso em sexo em muitos momentos do dia. Seja em qualquer situação: nas risadas de um grupo de amigas compartilhando as alegrias das compras feitas; nas meninas de mini-saia e sapatos de couro preto envernizados; nas garçonetes, nas meninas que andam apressadas – as apressadas são as minhas favoritas. Tanta pressa pra quê?

Cheguei ao meu destino. Quando sai da estação estava chovendo forte. Ir a um cemitério num dia nublado é um programa mórbido, e se além de nublado estiver chuvoso, daí não faz o menor sentido. Desci as escadas de volta a estação do metrô dando graças à Deus por estar vivo. Caminhei alguns metros e lá estava ela perdida diante de um enorme e confuso mapa das estações do underground . Os predadores preferem ou presas velhas, ou jovens, ou machucadas e perdidas. Esta estava perdida em seus enormes olhos azuis. Magnífica!, como diria um amigo. Esperei um pouco para ter certeza de sua situação, e sem despender de minhas energias ela veio em minha direção - eu que instantes atrás reclamara da chuva, da gripe. Você precisa de ajuda, perguntei em inglês com a sanha e a má intenção dos desesperados e dos famintos, mas sempre com muita polidez. É interessante pensar no que a insegurança transforma as pessoas. Ela rendeu-se à sua necessidade maior e respondeu que sim, e eu pude perceber que ela era estrangeira. Perguntei sua origem, ela respondeu Argentina, mas não de Buenos Aires, do interior, de Rosário. Uma caipirinha muito bonitinha por sinal. Sou uma raposa furtiva. Perguntei para onde ela estava indo e adeqüei o meu itinerário ao dela. Descemos as escadas em direção à plataforma como um casal cúmplice do mesmo crime. Sensacional!

A chuva continuava forte e nós fomos ao The National Gallery ver algumas pinturas. Muitas pessoas, o cenário ideal para perdê-la de vista. Mas toda velha raposa sabe onde a galinha esconde seus ovos e assim como na pintura 'Venus at Her Mirror (The Rokeby Venus)' de Diego Rodríguez Silva y Velázquez, que sabemos para onde o olhar da musa aponta, eu, de canto de olho, observava a direção que minha pretendida tomava. Procurar respostas nas pinturas para tentar acalmar as minhas aflições é sempre um exercício fascinante. Quero voltar mais um dia sozinho. Terei um pouco mais de tranqüilidade, sem tentações carnais - não se caça procurando respostas para as aflições.

Pensei que ela fosse embora assim que eu me descuidasse, mas pelo contrário, sua insegurança não a deixava ir. Eu não queria parecer tão carente e procurava fingir pleno interesse pelas pinturas. Pintura nenhuma, ao menos não naquele dia.

Passaram-se duas horas e sugeri que fossemos a um outro lugar, talvez a um pub, ela disse que sim, e ali, naquele instante, percebi que o jogo havia sido invertido, era eu que estava sendo caçado. Uma gracinha. Caminhamos um pouco debaixo da insistente e fria chuva londrina feito um casal de namorados até chegarmos ao pub Horse. O lugar estava cheio e esfumaçado. Eu a conduzi ao segundo andar na esperança de encontrar uma mesa e que pudéssemos conversar finalmente. Resisto a inúmeros fatores externos, mas somente quando estou disperso, quando estou acompanhado procuro o silêncio dos corpos. Ela tirou seus casacos e pela primeira vez pude ter a certeza da perfeita lapidação de seus contornos. Magnífica!, como diria um amigo. Uma rosa branca adornada por tulipas amarelas flutuando em um imenso rio de águas azuis - essa foi a primeira imagem que me veio à cabeça.

Pedi uma cerveja e ela um esfuziante chocolate quente. Ela é daquelas meninas que não bebem num primeiro encontro mas que depois pedem para apanhar na cara e serem chamadas de vagabunda, pensei. Conversamos um pouco, nada de muito excitante, mas ela disse em dado momento que uma amiga a aconselhara a beber álcool para ajudar a falar inglês, o que não deixa de ser verdade, disse por de trás da sombra cínica do meu purgatório, e ela sorriu curiosa. Perguntei se poderia revê-la, ela disse que sim. Trocamos telefones, e-mails e olhares mais entendidos. Tenho por hábito, e também porque aprendi com meu pai e em uma aula de dicção e impostação de voz em uma universidade que uma vez freqüentei, que temos sempre que olhar direto nos olhos das pessoas, e eu mergulhei inteiro naquele azul. Tudo ficou mais 'claro' a partir daquele instante.

Deixamos o pub debaixo de uma chuva fortíssima e fomos correndo até a estação do metrô. Ela me perguntou o que eu faria depois, disse que iria caminhar um pouco e que depois iria para casa. Que absurdo, não quero imaginar o que deve ter passado pela cabeça daquela menina, chovendo daquele jeito e eu indo passear. Por pouco não nos beijamos, um certo constrangimento no ar, um riso, e ela desceu os degraus da estação, se foi. Voltei para pub onde estávamos, tomei uma cerveja e depois fui comprar cervejas na lojinha de um indiano alto e de mau hálito. Comprei duas Tennent’s Super, Very Strong Lager, que é a cerveja dos mendigos por aqui. O teor alcoólico é de nove por cento, duas vezes mais forte do que uma cerveja 'nobre'. Tomei as duas latas sucessivamente num beco meio escuro por onde poucas pessoas passavam. Senti-me esquisito, uma criatura lasciva das trevas, foi quando lembrei-me de uma frase de Jean Genet 'A beleza é a feiúra em repouso', mais ou menos isso. Tive a sensação oposta, fiquei todo arrepiado. Joguei as latas de cerveja no lixo e corri dali tentando desesperadamente encontrar em mim uma pessoa melhor. A chuva me lavará, pensava. Os pingos da chuva purificam a alma da gente, e eu continuei a andar rápido, até porque a gripe viria forte no dia seguinte. Segui pelas ruas.

Às vezes escuto chamarem meu nome, como se fosse um eco. Já me disseram que não posso responder, pois trata-se da morte me (nos) chamando. Me disseram, sim. Às vezes consigo escutar música como se estivesse usando um walkman em meus ouvidos. Em outras ocasiões um filme passa diante dos meus olhos, como se estivesse numa sala de cinema. Todas estas sensações se intercalam e, assim com iniciam cessam, como fossem o estalo de som de um fio de cristal partindo-se. Ou estou degenerando, ou nesses momentos de 'magia' percebo o quanto somos importantes uns para os outros.

Cheguei em casa bêbado. Liguei para a minha linda argentina e disse que aquele encontro me havia me feito acreditar em amor a primeira vista, ela riu, riu entusiasmada. Disse que esperaria por ela no dia seguinte na estação de Picadilly. Fui dormir às nove e meia da noite em Londres, o que parece um contra-senso, mas fui dormir em paz.

Não obedeçam seus corpos, não obedeçam a ninguém, simplesmente viagem".

"Se entrega Corisco!".