O caso do ponto facultativo

 

O CASO DO PONTO FACULTATIVO

Miguel Carqueija

 

Isso aconteceu comigo há muitos anos atrás. Basta dizer que não foi nem neste milênio. Eu trabalhava numa repartição e morava só com minha mãe, fora as cadelas que ela criava.

Naquele tempo eu era muito jovem e, hoje reconheço, muito ingênuo, sem conhecer bem as coisas da vida. E isso explica o que aconteceu.

Não sei porque cargas d’água o prefeito resolveu decretar ponto facultativo de manhã, em vez de fazer com antecedência pelo menos de um dia. Eu só fiquei sabendo quando cheguei ao local de trabalho. Eu e o Zany, o inesquecível Zany, que era uma figura tão peculiar.

Ele e eu ficamos sozinhos trabalhando, o Trindade não veio, e não apareceu nenhuma chefia para nos dispensar.

Que fique bem claro: eu sabia o que era ponto facultativo: era facultado trabalhar ou não, diferente dos feriados. Porém, na minha cabeça isso era facultado à chefia, ela é que devia decidir se os funcionários podiam ou não folgar no dia de ponto facultativo. Não me passava pela cabeça que a escolha cabia ao empregado, nem isso me pareceria lógico, pois existe a conveniência do trabalho. E como ninguém me dispensou, eu fiquei trabalhando. Eu e Zany.

Quando eu voltei para casa, fui recebido por uma tempestade. Entenda-se: naquele tempo não existia celular e nós, como pobres, também não tínhamos telefone de tomada. Era difícil para os pobres na época.

Minha mãe estava aflitíssima. Na cabeça dela (para vocês verem como as cabeças variam), assim que soubesse que era ponto facultativo eu teria de ter retornado. E como eu não retornei, a não ser na hora habitual, ela foi ficando cada vez mais nervosa. Mamãe era uma figura boníssima, mas de tendência pessimista. Para ela, devia ter acontecido alguma coisa comigo na volta para casa. Um desastre, atropelamento...

Para resumir, naquele dia eu recebi uma descompostura e tanto. Não tinha nem como me defender. Na hora nem me ocorreu lembrar que eu só soubera do ponto facultativo depois de registrar minha entrada no cartão de ponto, recurso usado naquele tempo (não se usava computador).

Meu pai, então já falecido, tinha me falado certa vez no ponto facultativo. Mas então eu era uma criança e nem me interessei pelo assunto.

A quem vai começar a trabalhar, aconselho a aprender rapidamente todos os macetes possíveis do emprego. É melhor do que receber inesperadas descomposturas.

 

Rio de Janeiro, 5 de março de 2023.