A todo Vapor!

Janeiro de 2009. Reunião na Secretaria Municipal de Assistência Social. Em pauta, as apresentações dos planejamentos das atividades que seriam desenvolvidas durante o ano em cada Núcleo de Ação Comunitária.

Chegou a vez do Educador expor o que pretendia trabalhar com os adolescentes naquela temporada.

- Bom pessoal, tâmo aqui com uma proposta diferenciada pra abordar um tema que todo ano é batido na escola e no projeto: as datas comemorativas. Eu sei que pra nós acaba sendo meio que "obrigatório" trabalhar esses dias especiais com a meninada. E a gente acaba repetindo objetivo, conteúdo, metodologia e avaliação. Sempre mais do mesmo. E missão cumprida...

- Então a ideia agora é dar uma chacoalhada na galera: mostrar a real, pra fazer pensar, alargar os horizontes, sair da caixinha. Acho que já passou da hora de desativar o modo padrão de como as histórias vem contadas nos livros e na TV.

- Por que concentrar em um só dia no ano a discussão sobre a necessidade de preservação da vida e da cultura das populações primitivas, que já tavam aqui, eram legítimas proprietárias das "terras descobertas"?

- Por que limitar a um só dia o debate sobre a dificuldade de acesso à educação de qualidade, de ingresso e permanência no mercado de trabalho, de atendimento digno e eficaz na Unidade Básica de Saúde, que tem que enfrentar quem nasceu com a pele preta?

- Por que oferecer flores às mulheres uma só vez no ano, pra tentar minimizar a misoginia, a violência doméstica, as desigualdades de ocupação de postos de comando, de remuneração, de representação política?

- Bora conversar, debater, questionar "verdades absolutas", "fatos incontestáveis", quebrar paradigmas, desmistificar "narrativas perfeitas", "histórias enlatadas" - e também celebrar, porque não? - todo santo dia! Por isso, o tema do nosso Núcleo pra esse ano é:

"Todo dia é dia... de todo mundo!"

Março.

- Exprimões e Expriminhas, esse mês todo dia vai ser Dia da Mulher! E como tâmo na primeira semana, já vâmo logo pro tão famoso dia 8!

- Dia Internacional da Mulher!

- Ok, muito bem! Alguém sabe o motivo da escolha da data?

- Melzinho, Professor! Foi na gringa, faz uma cara, mais de cem anos, tá ligado?

- É essa fita mesmo, Tá Ligado! A professora de história dischavou pra nós! As mina trampava dezesseis hora por dia na fábrica de roupa, criançada também moía no basquete, porque creche nem pensar....

- Os patrão trancava as porta da parada pra ninguém dar perdido e ainda cobria o relógio pra geral não se ligar de quanto tempo ficava no corre...

- Foi aí que resolveram parar as máquina. Greve. Queriam diminuir o tempo de serviço pra doze horas e chegar o salário pro mesmo tanto que os mano ganhava!

- O dono da bagaça estrilou e tocou fogo no barraco com todo mundo dentro. Morreu mais de cem!

- Então os maluco tiveram a ideia de homenagear as mina que morreram queimada, tá ligado!

- Caramba! Detonaram! História bem louca, né? E se eu disser pra vocês que é tudo miguelagem?

- Fala sério, Professor!

- Tá tirando com a nossa cara, mano?

- E com a cara da professora de história...

- Sinto muito, anjinhos e anjinhas! Mas essa versão tá bem longe de ser a real. Consta que o tal do incêndio aconteceu em 1857, na Fábrica Cotton, em Nova Iorque. No entanto, não há um registro da tragédia nos jornais da época.

- Então é tudo uma grande mentira?

- Digamos que seja uma baita distorção! Houve sim, um incêndio em Nova Iorque, comprovado, documentado, testemunhado. Em uma tecelagem, Triangle Shirtwaist Factory, que ocupava três andares de um prédio, do oitavo ao décimo. Havia cerca de 600 operários trabalhando: homens, mulheres e crianças.

- As portas não estavam trancadas, mas o desespero de todo mundo pra escapar do fogo, combinado com uma escadaria estreita e interminável, virou uma muvuca que deu ruim demais: morreram 125 mulheres e 21 homens.

- E foi em 1911, no dia 25 de março! Um ano antes, a ativista alemã Clara Zetkin, professora, jornalista, política, já tinha proposto a criação do Dia Internacional da Mulher, na Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, na Dinamarca, com a intenção de tornar a data um marco anual de manifestação pela igualdade e pelo direito das mulheres ao voto.

- Mas então porque ficou mesmo o dia 8 de março? Não foi o dia do incêndio?

- Pois é, agora é que são elas: o dia foi escolhido pra homenagear as mulheres russas!

- Como assim? Da onde tiraram essa resenha?

- Da história, Jennifer! Tiraram da vida real. Em 1917, as mulheres russas foram pra rua, exigindo o fim da participação do país na Primeira Guerra Mundial e a criação de empregos pra poderem sobreviver com dignidade. Queriam seus maridos de volta e o mínimo de condições pra manterem suas famílias.

- O ato ficou conhecido como Protesto por Paz e Pão. É considerado um dos marcos iniciais da Revolução Russa! E foi declarado oficialmente pela ONU, em 1975, como o fato motivador da criação do Dia Internacional da Mulher.

- Não foi nesse lance aí que começou o tal do comunismo, Professor?

- Foi sim, por isso "precisaram" criar uma história alternativa pra escolha do Dia Internacional da Mulher.

- Pra não dar moral pras russas pagarem de donas do 8 de março...

- Professor, eu quero ser ativista! Igual a tal da Clara aí da foto, que tem esse sobrenome que ninguém consegue falar! Você acha que eu posso ser que nem ela, Professor?

- É Zetkin, Karolaine! Zetkin! E sim, você pode ser ativista! Com esse brilho no olhar, minha querida, você pode ser o que você quiser!

E foi dada a largada.

Biografias de mulheres que fizeram história. Textos. Filmes. E músicas. Mas muita música!

Rolaram as clássicas.

Erasmo Carlos:

"Dizem que mulher é o sexo frágil, mas que mentira absurda...

Mulher, mulher, na escola em que você foi ensinada, jamais tirei um dez, sou forte mas não chego aos seus pés."

Rita Lee:

"Por isso não provoque, é cor-de-rosa choque!"

Milton Nascimento:

"Maria, Maria, mistura a dor e a alegria...

Quem traz no peito essa marca

Possui a estranha mania de ter fé na vida."

Mas também teve o lado B. Que, por sinal, causou...

Moreira da Silva:

"Na subida do morro me contaram

Que você bateu na minha nega

Isso não é direito

Bater numa mulher que não é sua...

Você mesmo sabe

Que eu já fui um malandro malvado

Somente estou regenerado

Cheio de malícia

Dei trabalho à polícia pra cachorro

Dei até no dono do morro

Mas nunca abusei de uma mulher

Que fosse de um amigo."

Essa rendeu altas discussões...

O Educador tava muito feliz. Bem pimpão mesmo. O interesse e o envolvimento do pessoal tava superando as expectativas!

Bora tocar em frente...

Sexta-feira. Dia de planejamento, reunião na Secretaria, visita à escola, visita à família.

Tá lá o Educador preparando as atividades da semana.

- Opa, Professor! Tudo beleza? O senhor não deve me conhecer. Sou o Charles, pai da Emilly Karolaine. Podemo trocar umas ideia?

Conhecia sim. Impossível não saber quem era: Charles Seagal Eastwood. Nome de batismo, assim mesmo. Registrado em cartório. Ou, simplesmente, Vapor! O dono da quebra... da comunidade.

- Claro, Charles! Podemo sim!

- Então, Professor! Tá correndo uma letra aí que o senhor tá fazendo um trampo firmeza, tá destravando as ideia dos menino...

- Opa, que maneiro! Fico feliz de ter esse retorno!

- É, só que tá destravando demais, castela? Esses dia a Emilly chegou em casa falando que queria ser ativista. E que o senhor falou que ela podia ser o que ela quisesse...

Aí o Educador já começou a tremer na base...

- Aí já passou do limite, meu considerado! Já tá tudo esquematizado pra Emilly. Eu já cantei o futuro dela. Ela vai fazer Administração. Vai tocar as parada das finança da firma, entende?

E agora? Falo o que penso e arrisco levar uma bala na testa?

- Então, Charles! Entendo totalmente sua maneira de pensar em juntar duas coisas muito boas: a Emilly estudar, se formar e tomar conta dos negócios.

- É isso, mano! É só isso que eu quero! Ela comigo, bem, feliz...

Caramba, ele vai atirar em mim!

- Mas, não leve a mal, já que tâmo num papo reto, sou obrigado a te perguntar uma coisa: será que é isso que ela quer, Charles?

- Ela é uma menina, Professor! Ela nem sabe o que ela quer! Se liga, Brô!

A essa altura, o Educador já tava todo molhado. Sim, mijou nas calças. E o Vapor sacou que o Educador não tirava os olhos do volume na sua cintura.

- Relaxa, Professor! Não vou passar o senhor, não! Só tenho essa máquina pra me defender, tá ligado? Tem muita gente invejosa nesse mundo...

- De boa, Charles! Tenho certeza que você é um cara do bem...

- Faço mal pra ninguém mesmo não, Professor! Geral espalha muita groselha da minha atividade, coloca muita fita errada na minha conta. Todo mundo fala que eu sou vida louca, mas garanto pro senhor que sou pai de família, honesto e trabalhador...

- Imagina, Charles! Só de conversar com você já da pra conhecer o seu caráter...

- É que esse povo fala muito, Professor! Não pode ver a prosperidade do irmão, que já começa a querer derrubar. Sou empreendedor, sabe qual é? Com CNPJ. Emito nota fiscal. Pago imposto. Sou cumpridor da lei. Aqui meu cartão...

- Branca de Neve Distribuidora!

- Negócio limpo, Professor! Só porque vendo leite em pó e farinha de trigo, inventaram que sou traficante de cocaína, que sou o chefe da quebrada, que mando matar gente. Maluco me chama de Vapor. Criaram a lenda que eu não sou o dono do vapor porque eu sou o próprio vapor. Muita injustiça, Professor. Meu nome não é Vapor!

- Pois é, Charles! O mundo tá sempre julgando, rotulando, querendo obrigar as pessoas a serem quem elas não são, quem elas não querem ser...

Quando se tocou, já tinha falado. Veio da alma, fazer o quê? Preparar a própria...

- Mandou essa letra pra eu repensar o futuro da Emilly, né Professor?

- Na boa, Charles! A menina manda bem demais nas humanas. É devoradora de livros, escreve muito, gosta de aprender, de pensar, é curiosa, criativa...

- Eu sei, Professor! Outro dia trombei um caderninho dela. Só música. Tudo composição dela mesma...

- Meu querido, paz no coração! Você é pai, sabe muito mais que eu qual é a da Emilly. Deixa sua filha escolher o caminho dela...

- É, eu sei, irmão! Vou sentar com ela...

Irmão? Irmão, caramba! Obrigado, Senhor! Não vou mais morrer!

- Resenha boa, Professor! Mas é bom dar uma passada ali no postinho. Tá muito novo pra essa mangueira aberta aí, não tá não?

Vida que segue.

Vôlei no campinho de areia do Projeto. Todo dia, depois das atividades em sala. A galera curtia demais. O Educador também. O jogo só acabava quando a Zelma, a cozinheira, chamava pro café da tarde.

Naquela semana, teve novidade. Apareceu time visitante pra jogar com a gente. O Vapor e os parças.

- Aê, Professor! Tem como colar nóis de próximo aí?

- Claro, Charles!

O Educador entendeu que o Vapor tava querendo deixar bem claro quem mandava no pedaço. Provavelmente pra compensar a recuada monstro com a Emilly. Uma demonstração pública de poder e pronto, conta zerada.

- Mas vocês vão jogar com esse time mesmo contra nóis, Professor?

- Vâmo sim, Va... Charles! O time é esse mesmo!

- Só as meninas e o senhor, Professor? É isso?

- Rapaz, vou te falar uma coisa: sou eu quem afunda o barco. Respeita as mina!

- Fala sério, Professor! Tiveram a chance, mas se vocês querem perder de lavada, firmeza!

E foi uma lavada mesmo. Só que invertida. As meninas tavam passando o trator no time do Vapor. Crise interna a cada ponto tomado. Discussão a cada bola que caia na areia. Cobrança a cada bloqueio. Xingamento a cada deixadinha não alcançada. Tudo caminhando pro maior vexame da história.

O Educador começou a tremer na base. De novo.

- Ai, caramba! Isso não vai dar bom! O Vapor não vai assinar o recibo dessa vergonha. Mas também não tem o que fazer pra segurar esse flow. Deixa solto, então.

20x7. Último ponto. Educador no saque. Bola na mão. Olhar no Vapor, que fez um sinal com a cabeça pro seguran... pro parceiro, sentado à sombra da mangueira, que de imediato levou a mão às costas.

O Educador viu o metal reluzente, refletindo por um segundo a luz do sol. Não deu pra segurar. Se mijou todo, de novo.

- Dessa vez, ferrou...

Olhou pro Vapor. Olhou pra bola. Jogou pra cima. Sacou. Só ouviu o pipoco. E viu todo mundo paralisado. Como se a cena tivesse sido congelada. Até que alguém gritou.

- Tiro!

- Que tiro, nada! Foi o Professor que estourou a bola. Bateu com força, hein Professor?

O Educador, transbordando adrenalina, sem saber o que dizer, só abriu os braços e confirmou com a cabeça.

- Pois é, sem bola não tem jogo! E se o jogo não acabou, ninguém ganhou, ninguém perdeu! Confere, Professor?

- Confere, Charles! Fim de jogo. Sem vencedor, sem derrotado! Bora pra dentro pessoal, já tá na hora do café!

No dia seguinte entregaram uma caixa no Projeto. Aos cuidados do Educador. Era uma bola de vôlei, novinha. Com um bilhete.

"Salve, Professor! Foi mal pela bola, mas não dava pra passar uma cara de perder pras mina! Aí já era o respeito da quebrada inteira. Tô mandando uma nova pra repor. Segue seu trampo aí na paz! E vai ver essa mangueira aberta, irmão!

Passou um tempo e o Vapor rodou. Cumpriu oito anos por tráfico. Conheceu Jesus na tranca. Se converteu. Virou pastor. Toda semana da testemunho na igreja.

A Emilly Karolaine virou professora. Da aula no ensino médio, em escola pública. Tem melhor forma de ser ativista?

Troca altas ideias com o Educador: temas transversais, planejamento, objetivos, conteúdos, metodologias, avaliações. Semana passada mandou o que bolou pro Dia Internacional de Mulher desse ano.

"Tudo bem, Professor! Vou tocar Titãs pra galera dessa vez, será que vira? Segue a letra..."

Me estuprem, a culpa é toda minha

Me desculpem me vestir assim

Me estuprem, eu que saí sozinha

Me desculpem estar falando em mim

Me escutem, me desculpem por favor

Me desculpem, seja lá pelo que for

Me estuprem, se dei algum motivo

Me desculpem por eu ser mulher

Me estuprem por eu ser só sorrisos

Me desculpem, outra razão qualquer

Me escutem, me desculpem por favor

Me desculpem, seja lá pelo que for

Me desculpem, me desculpem

Me desculpem, me estuprem!