GAVITA CRUZ E SOUSA

MADONA DA TRISTEZA

[In memoriam à Gavita Rosa Gonçalves Cruz e Sousa]

Nelson Marzullo Tangerini

A Literatura e, principalmente, a História muitas vezes não retratam o heroísmo e o sofrimento por que passaram algumas mulheres que foram excluídas do processo histórico.

Falo de Gavita Rosa Gonçalves Cruz e Sousa, que enlouqueceu após perder três filhos, todos vítimas da tuberculose.

O que sentia o coração de Gavita, esposa do poeta simbolista João da Cruz e Sousa? O que fez seu cérebro perder o compasso da vida?

Cruz e Sousa descreveu o sofrimento de Gavita no soneto “Madona da tristeza”, que faz parte do livro “Últimos sonetos”, escrito na casa do Encantado e publicado postumamente por Nestor Victor, seu amigo mais próximo.

“Quando te escuto e te olho reverente

E sinto a tua graça triste e bela,

De ave medrosa, tímida, singela,

Fico a cismar enternecidamente.

Tua voz, teu olhar, teu ar dolente,

Toda a delicadeza ideal revela

E de sonhos e lágrimas estrela

O meu ser comovido e penitente.

Com que mágoa de adoro e te contemplo,

Ó da Piedade soberano exemplo,

Flor divina e secreta da Beleza!

Os meus soluços enchem os espaços

Quando te aperto nos estreitos braços

Solitária Madona da Tristeza!”

Nestor Victor foi professor da professora Catarina Santoro, prima de minha mãe. Catarina contava que Nestor, em sala de aula, só falava do amigo Cruz e Sousa e da família do poeta.

Em outra crônica minha, publiquei um soneto do “Dante negro”, escrito num momento de febre extrema causada pela tuberculose.

Concentro-me agora em Gavita e nos sofrimentos por que passou essa mulher afrodescendente, também ela vítima de uma sociedade supremacista.

Após Cruz e Sousa e Gavita perderem três filhos, vítimas do “Mal do século”, como dissemos anteriormente, resolve o poeta, também minado pela tuberculose, seguir os conselhos dos amigos e viajar para a localidade de Sítio, hoje Antônio Carlos, à época distrito de Barbacena, MG, onde tentaria a cura da doença, respirando os bons ares da Serra da Mantiqueira.

Ali, em Sítio, depois de três dias delirando, morre na Estação Ferroviária de Sítio, ao lado de Gavita, o poeta catarinense. Conta-se que o poeta foi expulso na Pensão Lemuchi, onde se hospedara, por estar vomitando sangue.

Sem rumo, naquela estação de trens, Gavita não sabe o que fazer.

Devido à falta de dinheiro – e, talvez, por racismo -, seu corpo é enviado para o Rio de Janeiro, onde seria sepultado, no Cemitério de São Francisco Xavier, no Caju. Mais uma vez aparece Nestor Victor, para comprar uma sepultura digna para o amigo poeta.

O corpo de Cruz e Sousa, é bom lembrar, foi despachado para o Rio num trem de carga, entre bois e muares. O trem, lento, só chegaria à Central do Brasil, então Capital Federal, seis dias após seu falecimento. Durante essa dura e amarga viagem, Gavita esteve a seu lado, acompanhando de perto a decomposição do corpo do marido. Era o bastante para alimentar ainda mais a sua loucura, depois dessa terrível tragédia.

Mas Gavita, grávida pela quarta vez, dá à luz João da Cruz e Sousa Jr., que nasceria com saúde e seria criado por uma família amiga, uma vez que a viúva do poeta não tinha condições de cuidar daquela criança. João Júnior cresce e, aos 17 anos, se trona pai de Sílvio Cruz e Sousa, que se casaria com a cantora Hercy, que daria à luz Dina Teresa Cruz e Sousa, bisneta do poeta simbolista.

Infelizmente, Dina, minha amiga, nos deixou há mais ou menos dois anos, depois de ter levado uma vida muito dura, repleta de provações. Estava sempre disposta a ir a eventos ligados ao bisavô poeta. E, junto comigo, inaugurou a Biblioteca Cruz e Sousa do Colégio Estadual Antônio Houaiss.

Creio que é hora de homenagear a Sra. Gavita Rosa Gonçalves Cruz e Sousa, que merece, mais do que nunca, ter seu nome registrado na história da literatura brasileira.

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 30/03/2023
Reeditado em 30/03/2023
Código do texto: T7752776
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