Enxuto

Vou entrar em coma com a minha cara desvencilhada de qualquer expressão. Rumo ao sono, vida sem vida. clímax da existência sem dor. Mas freei em cima do carro, bati o pneu da bicicleta com o pneu da frente e o xingamento me defribilou. Choque no peito. Saltei, mas não cheguei a cair, dei vários pulos para a frente largando o guidom e a verga do equilíbrio me susteve imóvel entre duas pistas de vai e volta riscadissima pelas luzes vibrante dos faróis dos carros, insetos rápidos zunindo além algumas dezenas de quilômetros a cada hora. Mar de carros e eu fui parar exatamente na ilha da faixa do meio que separava a que ia e a que vinha. Enquanto isso minha bicicleta já ia naufragando sendo engolida pelo morder das rodas de um ônibus-tubarão. Tragédia concretizada já e eu ainda acordado, sem entender porque, teria ficado uns três minutos ali entre a esperança de recuperar a bicicleta trucidada e o impulso de continuar cambaleando até achar meu destino, união da pele da pista com a minha pele pela prensa do pneu. Macio barro da rua, barro de asfalto lambendo o peito do meu pé descalço com sua saliva quente de meio dia. E assim que sinal fechado e sessada as ondas de automóveis, calma avenida, casas travadas, calçadas desocupadas, a bicicleta no chão, defunto nos meus braços, a vida que morreu na minha vida, o silêncio dos quases pairou sobre mim muito mais sobrenatural do que qualquer tipo de pós-vida.

Nia Ferreira
Enviado por Nia Ferreira em 20/04/2023
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