Plenitude e fim

Eu amo literatura. Me encontro em estado de total reconhecimento de mim mesma quando leio ou escrevo. Um grande amor que tive me ensinou que isso é plenitude, a mistura de paz com realização. Eu simplifiquei e hoje reconheço como amor.

Sou professora de Literatura, acho pertinente dizer à menina que fui um dia, aquela cheia de plenitude, que ela conseguiu ser professora de Literatura. Aquelas cartas que ela escrevia ao único amor que conheceu, hoje tentam encontrar um lar nessa imensidão de prédios e pessoas vazias. Ninguém mais escreve cartas.

Encontro-me hoje em estado total de reconhecimento de mim mesma, numa plenitude avessa. É. Plenamente no avesso da paz. Há um certo tempo, venho me lembrando das cartas de amor. Onde será que foram parar? Por que parei de escrever? Acho pertinente dizer à menina que fui um dia, que ela também estava estragando tudo, plenamente e definitivamente. Diferente das histórias de aventura, a vida é precisa, matematicamente justa.

Há um certo tempo, um pouco mais mesmo, sonho com o ornitorrinco de estimação que andava pendurado na minha mochila. Queria dizer à menina, que a maior prova de amor que recebeu, virou uma linda tatuagem. Acho pertinente.

E o tempo foi se esticando numa teia toda desgranhada. Acho pertinente dizer à menina que a saída dá num terreno imenso, vazio, porém novo. Não tem o caminho de volta. A cada escolha, um parede de espinhos envenenados se edificou e vai doer se olhar pra trás, vai sangrar se tocar. Nem adianta procurar pelo ornitorrinco.

Bem que me avisaram sobre o tal minotauro no meio do labirinto. Cê sabe que conversamos por anos. Mas não sou Ariadne. Ela já havia passado por lá com um tal de Teseu. Só o espectro do minotauro conversou comigo por todos esses anos. Ele ficou lá. Me despedi, agradeci pelos longos anos de conversa. Falei que se quisesse, poderíamos trocar cartas de amizade. Mas quem tem cascos não escreve. Ele até riu de mim: quem escreve cartas hoje em dia?

Ah, se eu tivesse uma caneta e um papel de oportunidade, uma só que fosse, escreveria a carta mais linda! Escreveria um poema de um casal sob a chuva no ponto de ônibus, na praça da linda cidadezinha. Escreveria uma crônica sobre pães de queijo com cream cheese e outra sobre pizzas. Se uma caneta apenas, de oportunidade e permissão eu tivesse, sentaria diante de um caderno e só sairia de lá com um livro pronto. Preencheria as páginas em branco da minha vida.

Mas não posso passar pelo labirinto. Não posso mais ferir a plenitude. A minha voou, leve e delicada, como um papel de seda.

Se um dia, um carteiro puder sobrevoar o labirinto, destinarei um bilhete à plenitude com um mini conto, mais ou menos assim:

Perdão, plenitude. Obrigada. Fim.

Mariane Dalcin
Enviado por Mariane Dalcin em 26/04/2023
Código do texto: T7773800
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