MIL TONS

MIL TONS DE MILTON

Nelson Marzullo Tangerini

Talvez já tenha escrito sobre o Clube da Esquina 1, disco de Milton Nascimento e Lô Borges. E se não escrevi, volto a comentar aqui sobre o impacto que esta obra causou em minha vida e na vida de muitos amigos que hoje não sei por onde andam.

Eleito recentemente como o melhor trabalho na história da música brasileira, esse disco me fez companhia em festas e reuniões em casa de amigos, o que fez com que se desmantelasse todo e as bolachas, quando rodavam nas vitrolas, emitiam sons de bolinhos assando na frigideira. Ouvíamos o disco até que ele furasse, com se dizia na época.

Clube da Esquina 1 me fez viajar pelas Minas Gerais. E, mais tarde, convenci meus amigos Roberto Costa e Nelson Schocair a descobrirem os segredos da terra de Milton, Drummond, Murilo Mendes e Guimarães Rosa. Tínhamos uma banda, a Lua Nova, que teve seu nome mudado (sugestão dos Nelsons) para Carta Geográfica – pois assim melhor homenagearíamos o poeta Murilo Mendes, de Juiz de Fora. Chegamos a tocar e cantar dentro de um ônibus, quando vínhamos de Curvelo para Belo Horizonte. E fomos aplaudidos.

Sabíamos que os mil tons de Milton vinham para ficar. Durante essa Travessia, uma frase me tocou fundo: “Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver”.

Plagio Gil, outro gênio, dizendo que, de Milton, não há mais nada a dizer, a não ser que a gente precisa ouvir Milton, o cavaleiro negro que viveu mistérios, senhor de casa e árvores, banhado em ribeirão; o Milton que é Nascimento todos os dias, quando o ouço para aliviar minha alma descrente de tantos outros nascimentos, porque sua música me leva a Minas Gerais das igrejas barrocas, dos trens, das montanhas e dos rios.

Escrevo sobre Milton porque, ao abrir o jornal de hoje, 29.4.2023, tenho a feliz notícia de que o carioca-mineiro foi eleito a personalidade do ano de 2022. Nada mais justo, embora ache que Milton mereça muito mais, porque o autor de Travessia – de parceria com Fernando Brant – está muito além das montanhas de Minas e é um símbolo máximo de nossa música.

Em Ponta de Areia, consigo ver as fotografias de sua viagem da Bahia a Minas, estrada natural. Posso ver moças tristes, viúvas nos portais, o povo alegre com a chegada do trem e o velho maquinista com seu boné.

Alguém poderia fotografar os percursos de Milton ou coletar velhas fotos que dessem uma ideia desta Paisagem da Janela de nossa visão. Um outro segmento da exposição poderia chamar-se “Na boleia do caminhão”.

Certa vez, em Antônio Carlos, perto de Barbacena, MG, ganhei uma carona de caminhão até o alto da Serra da Mantiqueira, viagem inesquecível e que fez lembrar a canção de Milton & Brant. Porque preferi viajar na boleia, com minha máquina fotográfica. Na volta, quando a tarde se findava, podia ver as luzes da distante Juiz de Fora.

Os mil tons de Milton permanecem na minha mente e nas mentes das pessoas de minha geração, pessoas que se encantaram – no Encantado ou não - com o som que era feito, também, por outros mineiros, como Toninho Horta, Wagner Tiso, Beto Guedes, Tavito, Tavinho Moura e banda 14 Bis.

O som que ficou em nosso imaginário sobrevive ao temporal de nulidades que assola este país que perdeu a noção total do que é música.

Milton já falou sobre isto numa entrevista. E eu não quero repetir o que o raro e sensível artista falou sobre o assunto. Apenas assino embaixo.

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 30/04/2023
Reeditado em 30/04/2023
Código do texto: T7776447
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