O QUE UM LIVRO NÃO FAZ!...- Caso Verídico

Ouço a campainha.

Sentada em frente ao computador, escrevendo meus sentires, apenas levanto a cabeça para olhar pela janela. Quem estaria me procurando neste final de tarde? Pensei que ninguém mais viria hoje ao meu recanto...

Nada disso, é a carteira. Fica estranho dizer – carteira; tem tantas conotações essa palavra... Mas é apenas a entregadora de cartas, moça de pequena estatura, mas forte. De óculos escuro, uniforme do Correio, sacola já quase vazia. Minha casa é uma das últimas pelas quais ela passa. Depois de mim, alcança a avenida principal do bairro, sobe para o ônibus e se vai. O trajeto para ela termina assim, depois da minha casa.

Vou atendê-la. Tem um envelope pardo, grande, na mão.

- Boa tarde, diz ela, a Sra. assina aqui, por favor.

Imagino o que tem lá dentro. Há uns dias atrás, através da internet, comuniquei-me com um poeta e combinamos “trocar figurinha”, isto é, ele me mandaria seu livro de poesias, já na segunda edição e eu lhe mandaria uma Antologia onde fiz o prefácio.

Tudo bem, nada de novo. O livro do poeta chegou primeiro, ainda não lhe mandei o meu.

Disse à carteira, à guisa de comentário: chegou o livro de poesias, que bom!

Enquanto assinava o recibo, ela me disse:

- Nossa, eu gosto tanto de ler... Mas os livros são tão caros... Nunca posso comprar... É de poesia esse aí?

- Sim, é, porque?

- Deve ser uma coisa do outro mundo!

Para mim, foi o bastante. Não resisto a esse tipo de queixa. É indigno o brasileiro não conseguir comprar livros. E a carteira foi tão espontânea! Lamentava de coração não poder ler.

Disse a ela:

- Tem um tempinho? Espera um pouco, não vai embora, não.

Entrei correndo, peguei um dos livros que me sobejava, uma caneta e a chave do portão.

- Entra aqui na varanda, só um pouquinho.

Ela entrou e sentou-se em uma das cadeirinhas, enquanto eu, toda ansiosa e feliz, fazia uma dedicatória para ela. Disse chamar-se Rosângela, mas que eu poderia dizer somente Rô. Escrevi Rosângela mesmo, dando a esse nome toda a importância que aquela figura simpática merecia. Escrevi emocionada: Para Rosângela, agora também minha amiga, de todo coração.

Entreguei-lhe o livro, ela se levantou, com os olhos cheios de lágrimas, que foram escorrendo devagarzinho por aquele rosto já meio cansado da labuta do dia, enquanto falava:

- Nossa! Nunca ganhei um livro!É o primeiro que vai entrar na minha casa! É a coisa mais linda que eu já ganhei! Nossa, a senhora me deixou sem palavra! Nem meu marido nunca me deu um presente tão lindo! O que posso falar? Já pensou? Hoje de noite, quando eu tiver terminado de fazer tudo lá em casa, agora vou ter o que ler! Vou ler milhões de vezes, até cansar! Vem cá, deixa eu abraçar a senhora!

E ela disse que tinha ficado sem palavras!

Levantei-me da cadeira; ela me deu um abraço tão forte, tão forte, que precisei afastá-la com carinho. As lágrimas, sem vergonha, escorriam por sua face exultante...

- Preciso ir, tenho que voltar ao Correio. Já pensou? Agora eu tenho um livro em casa!

- De vez em quando, toca a campainha, que eu vou dar um jeito de lhe dar mais algum livro. Combinado?

- Obrigada, obrigada, obrigada....

Foi dizendo ela enquanto se dirigia ao portão. Saiu. Fiquei olhando aquela figura se afastar apressada. Quase andava em zigue-zague, de tanto que se apressava.

Mantinha apertado junto ao peito aquele único livro de sua vida.

E a vida continuou...

Alguns poucos meses depois, estive em um evento sobre Literatura em uma Biblioteca. No término, pedi ao responsável se haveria algum livro para doação e contei-lhe, resumidamente o caso da carteira. Ele me deu três livros! Manuel Bandeira repartindo um volume com José Lins do Rego, João Guimarães Rosa e Samuel Lisman. Generoso o Dr. Alcy! (Faleceu em Agosto último. Grande perda!)

Deixei um bilhete pregado por fora na caixinha do Correio:

- Carteira, toque a campainha. Preciso lhe falar.

Ela tocou. Atendi. Pronto, quando viu os três livros, foi mais uma sessão de emoções, lágrimas de alegria. Foi um espanto para ela, três de uma só vez! Ela leu os nomes dos autores.

Perguntei se os conhecia, ela respondeu que uma vez tinha entrado numa livraria para “namorar” as prateleiras e já tinha visto aqueles nomes. Só não conhecia um deles e contei-lhe que aquele era um escritor falecido recentemente, o Dr. Samuel Lisman.

Mais uma vez lá se foi saltitante, sorrindo pela rua afora...

E a vida continuou...

Contei para um amigo, escritor de renome, os dois fatos e ele se comoveu muito, indignado como eu pelo fato de nem todos terem a oportunidade de viajar pelas letras. Perguntou-me se poderia mandar um livro seu para ela. Concordei. Combinamos que ele escreveria o nome dela no envelope, para que se sentisse bem importante. E assim foi. De novo escrevi o bilhetinho e coloquei na caixa do Correio.

Ela tocou a campainha. Atendi.

- Boa tarde, Ro, o que tem para mim?

Ela me entregou a conta do telefone.

- Só conta você tem pra mim?

- Não, querida, olha tem mais um livro para você.

Comecei a ler o subscrito em voz alta:

- Rachel dos... E em seguida - Para Rosângela.

- O que?! Tem meu nome aí?

- Sim, olha aqui. Está escrito seu nome. É para você. Abre, abre logo.

Suas mãos tremiam enquanto rasgava o lado do envelope com cuidado.

Abriu o livro e leu:

"Para Rosângela, cordialmente, R. Roldan Roldan. "

Começou a chorar abraçada a mim. Contei-lhe quem era o escritor, que tinha sido premiado várias vezes no Brasil e Europa, que era espanhol e o que tínhamos combinado fazer. Desta vez, seu choro era manso. A honra do presente tinha perturbado seu coração a tal ponto, que desta vez emudecera a euforia. (Será que emudecera mesmo?).

- Não acredito, um escritor premiado mandar um livro pra mim! E assinou o nome dele! E escreveu o meu nome! Vocês são demais. Não é sem razão que quando passo em frente à sua casa, parece que flutuo. Sempre me lembro que agora tenho livros na minha casa!

Fez menção de me entregar o envelope aberto, com certeza para jogar fora, mas voltou atrás no gesto. Guardou-o na sacola.

Disse-lhe:

- Se tiver vontade, escreva um bilhete e mande pra ele. O endereço está aí.

- Tenho vergonha, mas vou pensar.

Abraçou-me, beijando meu rosto, falando muitas vezes - muito obrigada.

Foi embora meio de lado, olhando-me enquanto caminhava.

Com as costas da mão enxuguei meus olhos marejados. Entrei.

E a vida continuou...

Algum tempo depois, estive novamente na Biblioteca do Dr. Alcy e ele me deu mais três livros para entregar a ela. Pronto. Foi o mesmo espetáculo de sempre: alegria, alegria, emoção, olhos marejados.

Até que chegou meu aniversário. Estava fora e quando voltei, à tarde, ela passou, tocou a campainha para assinar a correspondência e me perguntou a que horas eu levantava. Porque? Perguntei. Por nada, é que você sempre aparece com o rosto tão descansado!

Não era nada disso. No dia seguinte pela manhã, às 8h, ouço a campainha. O moço da floricultura me entrega uma enorme cesta de “café da manhã”, com tudo a que se tem direito, guloseimas, frutas, flores e um cartãozinho:

“Rachel, parabéns pelo aniversário. Que o colorido desta cesta venha enfeitar ainda mais a sua existência e a nossa amizade, mesmo que o parabéns venha atrasado. Te amo muito. Rosângela. Beijos. “

Mais uma qualidade da minha amiguinha carteira, além da gratidão, a generosidade.

Mais um capítulo: ontem de manhã (04/10) escutei um recado na secretária:

- Querida, recebi outro livro do Roldan, mas preciso de você!

O que será que aconteceu? Pensei.

À tarde, ouço a campainha. Era ela com o pacote do livro, ainda fechado, nas mãos.

- O que houve?

- Pois é, o pacote está no seu nome e no meu. Fiquei pirada, doida pra abrir. Pedi para meu chefe se podia, mostrei que tinha também o meu nome e lhe contei a nossa história. Ele apenas me olhou e entendi: ‘tá bem,’tá bem, não abro, não. Vou entregar pra ela primeiro! Sabe como é, a honestidade dele é famosa.

- E a sua, não é? Você entendeu a posição dele e veio até aqui com o pacote fechado! Podia ter aberto no caminho...

- Pois é, nasci assim, que fazer! Mas abre logo, pô! Vai me deixar sofrendo até quando?

Abri o envelope e lhe entreguei o livro. Mais um riacho de lágrimas descendo pela bochecha gorducha! Sugeri que escrevesse ao Roldan. Acho que ainda não se acha pronta e perguntei se o marido não acha ruim que ela receba presentes. Disse que não, que ele nem liga pra isso.

Convidei-a para um evento literário. Ela, com certeza, irá no sábado próximo lá na Biblioteca ver a premiação do I Concurso Internacional de Poesia, onde recebi menção honrosa e conhecer mais gente da literatura. Quer ver o Roldan!

Ela foi à Biblioteca. Toda arrumada, pintada, bonita, feliz. A minha roda de amigos sabe de sua história e fizeram a maior festa por conhece-la!

Ela não cabia em si de contentamento!

A crônica dela parece não ter fim......

...Se acontecer mais coisas, voltarei para contar...

Rachel dos Santos Dias
Enviado por Rachel dos Santos Dias em 14/12/2007
Código do texto: T777799