(Dois) Mil Grau

- Quem foi que falou isso aí?

Ah, o maluco já tava dobrando a esquina. Deu fuga. Ligeiro demais. Mas com tempo pra mais uma xingadinha, andando pra trás. Ainda por cima, rindo, o infeliz. Se achando...

- Vai tudo morder o rabo do capeta!

- Vâmo pegar?

- Vâmo sim, mas sem correria...

- Professor, preciso do nome completo e do endereço do engraçadinho!

- Pois não, Policial! Queira me acompanhar até a sala da Assistente Social, por gentileza...

- Pessoal, todo mundo pro refeitório! A Zelma já vai servir o café...

- Antes de qualquer coisa, quero pedir desculpas pela ofensa. Não é assim que trabalhamos aqui no Projeto. Também não admitimos esse tipo de atitude. Nosso foco é estimular e desenvolver os conhecimentos e as habilidades das crianças e adolescentes pra propiciar melhorias na convivência familiar, comunitária e social de cada um deles.

- Entendo perfeitamente, Professor. Não tem necessidade de se desculpar. Só preciso do nome e endereço do boneco...

- Então, é um caso bem fora da curva. Esse menino tem só treze anos e já ficou internado na Fundação Casa por quatro meses, por ato infracional análogo a roubo. O juiz entendeu que seria mais benéfico pra ele tentar a reintegração aqui fora. Estabeleceu condições bem severas. Escola e Projeto todo dia, com relatórios de frequência e desempenho...

- Pois é, evidente que não deu resultado. Vai ter que voltar pra custódia. Vâmo capturar e colocar à disposição do Juizado da Infância e Adolescência.

- Aí é que pega! Não faz nem três meses que o menino tá com a gente. Tivemos um começo difícil, mas ele vem apresentando evolução significativa nas últimas semanas...

- Quer dizer que agora é que ele tá melhorando? Achincalhando a polícia desse jeito?

- É, tenho que reconhecer que ainda tá muito longe do que a gente poderia considerar razoável, Policial. Mas o rapaz vem dando sinais de que tem um enorme potencial. A gente só precisa de mais tempo pra catalisar e...

- Pera aí, Professor! Será que é isso mesmo que eu tô entendendo? Tá me pedindo pra passar o pano pro moleque?

- É que levar ele de volta pra internação vai ser jogar no ralo tudo o que a gente construiu até aqui. E, com certeza, vai eliminar a última chance desse menino...

- Professor, ele é que tá desperdiçando todas as chances!

- Policial, peço encarecidamente sua compreensão! E uma oportunidade! Só uma! Não só pra ele, mas pra nós todos, como Projeto! Permita que a gente continue trabalhando esse menino! Vocês voltam aqui amanhã, ele se desculpa formalmente...

- A questão não é pedir desculpa, Professor!

- Concordo plenamente! Reconhecer o erro e pedir desculpa é só o primeiro passo, mas o fundamental é atitude. Garanto que será exigido dele procedimento ilibado, com tolerância zero pra qualquer deslize. E assumo o compromisso de entregá-lo ao senhor, pessoalmente, caso descumpra qualquer uma das condições. Meu amigo, pense: se fosse um filho seu...

Pensou, enrugou a testa, coçou a cabeça, suspirou...

- Vâmo fazer o seguinte: traz o moleque pra pedir desculpas em sala, com todos presentes, prometer que não vai fazer de novo e ficar ciente, ele e todos os outros - inclusive você, Professor - que não vai ter próxima! E nós vamos estar sempre passando por aqui, pra acompanhar o procedimento ilibado...

O Educador não tava acreditando. Tentou por tentar, já tinha o “Não” como certo e irrevogável. Mas a gente tem que entender que o cara por baixo da farda também é gente!

No dia seguinte apareceu o “Margarido”, como se nada tivesse acontecido. Na verdade, não devia estar se aguentando de curiosidade pra saber porque a polícia não tinha ido buscá-lo em casa depois do showzinho...

- Salve, Professor! Tô na maior broca! Vou colar ali no refeitório...

- Senta aí, Mil Grau! Tenho uma novidade pra você!

- Vou ser expulso do Projeto? O juiz mandou eu voltar pro inferno?

- O juiz não foi notificado! Os policiais vão voltar aqui hoje e você vai pedir desculpa pra eles!

- Pedir desculpa pros verme?

- Pedir desculpa pra geral! Você esculachou com eles na frente de todo mundo. Nada mais justo que se desculpar publicamente. Se quiser ficar...

- Firmeza, eu pago esse boi!

- Vai ter que pagar uma boiada inteira, meu chapa! Sua caixa de fósforos, passa pra cá!

- Só tem fósforo, mano!

- Se só tem fósforo, qual o B.O.?

- Como é que eu vou acender meu cigarro, Professor?

- Não vai acender cigarro, Mil Grau! Mesmo porque não é cigarro que tem aí...

Entregou como se tivesse estendendo uma mão pra ser cortada.

- Vai fazer o quê?

- Jogar fora!

- Tá me tirando, Professor?

- Se quiser ficar! Vai ter que ficar limpo o tempo inteiro. Se não vier, tchau! Se chegar brisado, tchau! Se vacilar, tchau! Pegar ou largar! Agora! Preciso da sua decisão agora!

- Vai desenrolar aquela parada do maluco lá da Grécia que mediu o tamanho da Terra?

- Eratóstenes de Cirene! Vou falar dele a semana inteira...

Pegou! Agora só restava rezar pra não largar...

- Bora formalizar o acordo, então!

- Hein?

O Educador se levantou, foi até o armário, abriu a porta e pegou uma garrafa pet de dois litros.

- Meu foguete, tio! Você guardou minha nave, mano!

- Vai ser o instrumento do trato! Vai ficar aqui na estante. Se algum dia você arregar, não aguentar a pressão, achar que não vai conseguir cumprir o combinado, pega ele e leva embora. E se um dia eu considerar que você espalhou a farofa, mando ele pra caixa-prego. E fim de papo!

- Fechou, Professor!

- Anjinhas e anjinhos, atendendo a inúmeros pedidos apresentados no dia dos lançamentos dos foguetes, hoje vamos aos detalhes de como Eratóstenes de Cirene conseguiu medir a circunferência da Terra com extrema precisão cerca de duzentos anos antes de Cristo.

- Ele era o diretor da Biblioteca de Alexandria, considerada o maior templo do saber da época. Um belo dia tava lá, organizando os manuscritos, catalogando os papiros, até que um deles chamou a atenção.

- O documento registrava que no dia do solstício de verão, na cidade de Siena - hoje Assuão - ao meio-dia, o sol atingia o ponto mais elevado de sua trajetória e chegava praticamente ao alinhamento perfeito com a Terra (na verdade, com o Trópico de Câncer).

- No popular: os raios batiam na cabeça do cidadão em linha reta, na perpendicular de noventa graus. O documento comprovava a afirmação registrando que o sol podia ser observado por inteiro no fundo de um poço daquela cidade naquele horário.

- Então o Eratóstenes começou a pensar:

- Lá em Siena, no solstício, ao meio-dia, o sol não projeta sombra.

- E partiu pros experimentos. Verificou se o mesmo acontecia em Alexandria. No solstício de verão, ao meio-dia, expôs um graveto ao sol. Fez sombra. Ele mediu o ângulo: 7,2 graus.

- Aí veio a sacada da Terra ser arredondada. Teve que partir desse princípio pra validar a teoria. Resolveu dividir a medida da circunferência - 360 graus - pelo tamanho da sombra do graveto - 7,2 graus. Resultado: 50.

Só tava faltando descobrir a distância entre as cidades de Siena e Alexandria pra calcular a medida do planeta inteiro com base na proporção.

Contratou um itinerante (pessoa que caminhava com passadas milimetricamente idênticas, muito comum na época - era o que tinha, né) pra percorrer o trajeto e estimar a distância entre os dois pontos: bateu em 795 quilômetros.

Eratóstenes multiplicou 795 por 50: 39.750 quilômetros! A medida da circunferência da Terra! Muito, mas muito próxima aos 40.008 quilômetros, considerada a medida oficial atualmente.

- Caramba, Professor! Imagina o que esse cara ia fazer se tivesse um GPS.

- E se ele visse como a Biblioteca ficou depois da reconstrução, então! Foi inaugurada em 2002. Um prédio espetacular, com design futurista, até prêmio já ganhou!

Naquele dia, o Educador teve a certeza de ter levantado a bandeira certa. O Mil Grau acompanhou fascinado o relato da façanha do célebre “multicientista”.

- Mano, no dia que eu tiver bala, vou dar um pião lá no Egito, conhecer a Biblioteca de Alexandria!

- Impossível, Mil Grau! Você, na gringa, pagando de turista nerd! Fala sério!

- Conhecimento e cultura, senhoras e senhores, conhecimento e cultura! Nunca subestimem a magistral capacidade de aprender, a sensacional capacidade de criar e a sublime capacidade de sonhar que cada ser humano tem dentro de si. Basta querer! E fazer o corre! Conhecimento e cultura transformam o impossível em brincadeira de criança!

E o Mil Grau comprou a ideia. Aprendeu, criou, sonhou! Quis e buscou!

Na escola, começaram a aparecer as primeiras notas azuis. No bimestre seguinte, nenhuma vermelha. Elogiado por todos os professores.

No Projeto, virou auxiliar do Educador nas observações de céu. Ajudava os amigos a identificar estrelas e planetas e contava as histórias da mitologia das constelações com perfeição e desprendimento. Solto. Livre.

O moleque tava bombando. Parou de cozinhar a mente: neurônios preservados, sinapses fervilhando, vida nova pela frente. E muito, mas muito promissora!

Segunda-feira. Mil Grau faltou.

- Também não foi pra escola de manhã, Professor!

- Será que tá doente?

Não tava.

- Mil Grau rodou, Professor! Recaiu, mano! Sexta-feira. Estourou com tudo. Virou a noite se acabando. De manhã, tomou o celular duma tia no Calçadão pra pagar o que ficou devendo na boca. Jogou a senhorinha no chão e deu linha. Pegaram ele antes de chegar na Avenida Brasil.

- Não pode ser! Não dá pra acreditar! Alguma coisa aconteceu...

- Aconteceu que o Mil Grau voltou a ser o Mil Grau de sempre, Professor. A carruagem voltou a ser abóbora, tá ligado?

- Não é possível, Tá Ligado! Tinha certeza que já tinha ganhado o moleque...

Dias depois veio a notícia de que o Mil Grau tava sendo mandado pra Franco da Rocha, pra cumprir onze meses de internação. A princípio seriam só cinco, mas mandou o juiz morder o rabo do capeta na audiência. “Ganhou” mais seis!

O Educador olhou pra estante. Viu o foguete.

- Pois é, você também vai pra reciclagem...

Mas alguma coisa dentro dele insistia que ainda não era o fim. Colocou de volta, no mesmo lugar.

- Vâmo esperar o seu dono voltar da reciclagem dele. Se ele voltar...

E se foram nove meses.

- Chegou uma carta aqui no Projeto ontem. Pro Educador! De Franco da Rocha!

- Mil Grau!

"Salve, Professor!

Tô escrevendo aí pra pedir desculpa pelas minhas mancada. Foi mau, mano! Quebrei o acordo, falei merda pro juiz, vim parar aqui.

Mas vou abrir pra você uma parada que nunca resenhei com ninguém. Não é pra pagar de coitadinho, nem tirar o meu da reta pra jogar a culpa nos outros, castela?

Mas é o lance da minha mãe, Professor! Ela largou do meu pai, foi embora quando eu tinha dois anos. Tá certo que ela teve lá as razão dela. Meu pai vivia mais no bar do que em casa. Mas o que pega é que ela não me levou com ela, Brô!

Aí casou de novo. Teve duas menina. Firmeza que ela refez a vida dela, mas nunca quis saber de mim. Cheguei a ir umas par de vez na casa dela pra perguntar o que eu tinha feito de errado pra ela me gelar daquele jeito, mas nunca tive coragem de bater na porta.

Naquela sexta-feira da zica, tava com os parça, no shopping. Rolê de boa. Aí trombei ela passeando com a família dela lá. Ela me viu, mas passou batido. Me ignorou, mano!

Aí perdi a linha total. A revolta tomou conta. Não tava vendo mais nada na minha frente. Só queria sair do ar, apagar, pra fazer parar o que tava sentindo. E deu no que deu...

Mas agora já tá tudo zerado. O que ficou pra trás já era. Tô focado só no que vem pela frente. E já tá logo aí: vou sair daqui a duas semanas. O juiz acelerou minha liberação por bom comportamento e pelas minhas nota. Tudo dez, Professor! Bota uma fé?

Usei cada minuto aqui pra estudar. E não é que esse lance de conhecimento e cultura é real mesmo? A Professora de Ciências virou minha fã, perguntou onde foi que eu aprendi astronomia. Me colocou pra mandar uma letra das peripécia do Eratóstenes pro pessoal. Os maluco piraram mais ainda na passagem do graveto. Fiquei famoso no pavilhão inteiro. Ganhei o respeito da geral. Começaram a me chamar de "Mil Grau de Cirene". Até me dispensaram do revezamento de lavar o boi.

Consegui terminar o fundamental aqui, mas agora que vou ganhar o mundo, queria fazer um pedido pra você: deixa eu voltar pro Projeto, pra poder começar o colegial?

Imagino que meu foguete já deve ter ido pro espaço faz uma cara. E é justo! Mas aprendi com um certo professor aí que quando a gente já tem o "Não"...

Me ajuda a chegar na faculdade, Professor? Se achar que não vale o trampo, tá suave! Vou dar meu jeito, nem que for sozinho, mas vou fazer virar!

Gratidão aí por ter sempre acreditado em mim, copia?

Um abraço, Mil Grau!"

O Educador conseguiu fazer chegar uma resposta pro Mil Grau. Mas não escreveu textão, nem nada. Mandou só uma foto. Do foguete dele, na estante. E registrou no verso: "A nave ainda tá aqui, no aguardo do piloto".

Se reencontraram no mês seguinte.

Mas esse tal de destino prega cada peça na gente!

Sábado, sete da manhã. O Tá Ligado batendo palma na casa do Educador.

- Professor, o Mil Grau sofreu um acidente! Tá na UTI, entre a vida e a morte!

- Pelo amor de Deus, Tá Ligado! Mas o que aconteceu?

- Ele pegou a moto do irmão, escondido, pra ir num pagode lá no João Domingos. Tá ficando com uma mina lá, quis pagar uma de playboy pra impressionar. Só não ligou que tinha uma blitz ali perto do mercado. Quando mandaram ele parar, acelerou e passou batido.

- Caramba, Mil Grau! De novo...

- Aí saíram na captura dele, mas ele não parou de jeito nenhum. Atiraram no pneu da moto. Ele perdeu o controle e foi direto no poste!

- Tava sem capacete?

- Se tivesse, tinha morrido na hora! A pancada foi tão cabulosa que o capacete rachou. E o crânio dele também. Tá em coma, Professor! O médico disse que não tem o que fazer. Só depende dele agora...

- Se só depende dele, então ele vai sair dessa, Tá Ligado! Bora rezar...

Doze dias. O Mil Grau acordou.

- O traumatismo foi gravíssimo, mas felizmente não houve perda de massa encefálica. Temos que aguardar pra ver como o cérebro vai reagir...

Reagiu legal não. O Mil Grau voltou com o HD formatado. Não reconhecia ninguém, não lembrava de nada, nem do próprio nome. Dificuldades motoras, de fala, olhar parado...

A avó apareceu no Projeto. Foi pedir a ajuda do Educador.

- Professor, o Doutor falou que a gente precisa estimular o Miguel pra ele recuperar a memória. Ele sempre falou muito do senhor lá em casa. Toda noite me contava o que tinha aprendido no Projeto. Me levava lá pra fora pra ver as estrelas, justo na hora da minha novela...

- Mas o que é que eu posso fazer, dona?

- O Doutor falou que uma pessoa ou alguma coisa que tenha sido marcante pra ele pode ajudar a fazer ele lembrar...

E veio a iluminação!

- Mil Grau, dá uma olhada nisso aqui!

E o Educador mostrou pro menino o foguete dele!

- Vâmo, Mil Grau! Lembra disso aqui?

Arregalou os olhos. As pupilas dilataram. Esboçou um sorriso. Juntou o polegar e o mindinho. Fez o número três.

- Três o que, Mil Grau?

Buscou o fôlego lá no fundo da alma:

- Newton...

- É nada, Mil Grau! A terceira lei de Newton!

- Ação e reação...

E apontou pro céu com o indicador:

- Meu foguete...

O Mil Grau ainda ficou lutando por mais três meses. Mas não resistiu. Morreu ali mesmo, na cama do hospital.

Já o Miguel Geraldo teve alta no mesmo dia. Saiu andando. Sem sequela. Os médicos não chegaram a uma conclusão definitiva sobre a surpreendente evolução do rapaz.

Terminou o ensino médio. Prestou vestibular na Unesp. Pra Física. Se formou com menção honrosa no diploma. Com especialização em astronomia.

Tá no Chile. Deserto do Atacama. Observatório de La Silla. Aprovado em processo seletivo pra uma única vaga de astrônomo assistente, concorrendo com mais de três mil candidatos de todo o mundo.

E nunca mais mandou ninguém morder o rabo de ninguém!

Mês passado mandou uma selfie. Em frente à Biblioteca de Alexandria. Sorrindo. Pleno e realizado.

"Brincando feito criança aqui no Egito."

Abraço, M.G.